No ano passado, em meio à interminável polêmica sobre a punição ou não dos torturadores da ditadura militar, a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff lembrou que a tortura é tida pela ONU e pelos países civilizados como um crime imprescritível.
O presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes assim a contestou: "O texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível. (...) Direitos humanos não podem ser ideologizados, é bom que isso fique claro".
Como jornalista veterano e que sempre me interessei pelas grandes questões jurídicas, eu lembrei, na minha refutação a Mendes, o direito de resistência à tirania, que impediria, tanto no caso de quem pegou em armas contra o nazifascismo na Europa como no caso de quem travou a luta armada contra o regime de exceção brasileiro de 1964/85, o enquadramento legal como terrorista.
Curiosamente, um ex-presidente do STF, o ministro da Defesa Nelson Jobim, acaba de dizer que, embora tratados internacionais e a ONU definam a tortura como crime imprescritível, isso não se aplica ao Brasil: "Os tratados internacionais aqui não valem mais que a Constituição. Eles estão sujeitos à Constituição brasileira, que dá imprescritibilidade para um crime só: o de racismo".
Que os doutos juristas esclareçam quem tem razão, Mendes ao afirmar que o terrorismo é imprescritível no Brasil ou Jobim ao garantir que o único crime imprescritível no Brasil é o de racismo. Para nós outros, leigos, causa estranheza que o atual e um antigo presidente do STF divirjam num assunto de tal relevância.
Mas, a questão que merece mesmo ser aprofundada é a da luta armada brasileira x terrorismo. Nos anos de chumbo, essa equiparação foi lançada num artigo falacioso da imprensa carioca e chamou a atenção dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas, que passaram a utilizá-la em sua propaganda enganosa.
Assim, os cartazes que a Operação Bandeirantes confeccionou em 1969 para serem expostos em logradouros públicos me apresentavam como um dos "terroristas assassinos procurados" que "depois de terem roubado e assassinado vários pais de família, estão foragidos".
No entanto, eu jamais participei de ações armadas, nem seria disto acusado quando me prenderam no ano seguinte. Ademais, julgado por quatro auditorias militares diferentes, em nenhuma das sentenças meus atos foram qualificados como terrorismo. Nem nas dos demais resistentes, aliás.
A própria ditadura percebia o quanto haveria de forçação de barra numa tentativa de caracterizar-nos, em termos legais, como terroristas. Era apenas um lance propagandístico, na linha goebbeliana: repisar uma mentira mil vezes até que ela seja tomada como verdade.
O que não impede de até hoje a extrema-direita bater nesta tecla, como única escapatória retórica diante das evidências avassaladoras de atrocidades cometidas pela ditadura. Já que não tem como negar as torturas e assassinatos perpetrados pelo seu lado, tenta equipará-los ao pretenso terrorismo.
Então, vale a pena atentarmos para estes esclarecimentos do professor de Direito Constitucional Alex Monnerat Baptista que, a meu ver, elucidam definitavamente a questão:
A Carta de 1988 previu tratamentos distintos para os crimes terroristas e os crimes denominados políticos. De acordo com o grande doutrinador de Direito Constitucional Daniel Sarmento:
"Não se devem caracterizar os atos praticados contra a ditadura militar como crimes políticos ou de terrorismo. Até porque, de acordo com a definição do art. 2º da Lei 7.170/83, foram os golpistas de 1964, e não os insurgentes de esquerda, que subverteram a ordem constitucional vigente, estabelecendo, sob a égide da violência, do terror e do medo, uma nova 'ordem' político-institucional, sem qualquer salvaguarda dos princípios básicos atinentes à fundamentação da soberania democrática do Estado.
"Ademais, a própria Lei da Anistia (que os próprios militares citam como uma lei pactuada democraticamente, mas não passou de mais uma decisão unilateral dos juristas da repressão) deixou de punir crimes considerados políticos. E se deixou de punir, excluiu a própria antijuridicidade destes atos".
Há quem tente discutir esta questão à luz do Art. 20 ("Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas").
Tal artigo, no entanto, faz menção a inconformismo político, mas não define que seja crime os atos praticados por militantes de esquerda contra regimes de exceção instaurados por violência e que tenham subvertido a Constiuição vigente (como ocorreu durante a ditadura militar).
A Jurisprudência já é assente neste sentido, asseverando ainda que, pelo fato de o Poder Judiciário estar impedido de apreciar matéria política, por força do art. 11 do odioso Ato Institucional nº 05, de 13 de dezembro de 1968, e pelo fato de o Congresso Nacional ter sido abruptamente silenciado pelo Poder Executivo (que se pretendia moderador), não podem ser tomados como terroristas os atos praticados pelos militantes contrários ao regime militar.
Os atos terroristas pressupõem, por definição, uma situação de normalidade democrática e uma concreta ameaça a esta normalidade oriunda de grupos armados e organizados (terroristas). O que havia, durante os tão famigerados anos de chumbo, era uma situação atípica na qual a opressão e a turbação às instituições democráticas partiam do próprio governo, este sim terrorista e com atitudes notadamente liberticidas.
No que tange aos acontecimentos ocorridos durante a ditadura, a questão fundamental é:
Se a resposta a estas questões for "não", então, sob a ótica da Jurisprudência, não há que se falar em atos terroristas cometidos pelos militantes da esquerda, durante a vigência do regime de exceção.
- havia uma normalidade democrática?
- os que tomaram o poder em 1964 tinham legitimidade para comandar os negócios políticos do país?
- os Poderes Legislativo e Judiciário funcionavam de forma livre e desembaraçada (no que tange à apreciação de matéria política)?
3 comentários:
Excelente texto, Celso!
Terroristas foram os direitistas reacionários e assassinos, que torturaram, mataram e desapaceram com os corpos das vítimas.
Nos "Anos de Chumbo' quem praticou o Terrorismo mais deslavado foi a Ditadura Militar, que prendeu milhares de pessoas com o objetivo de manter a população com medo, aterrorizada e afastada de qualquer atividade política organizada.
Quem lutou contra a Ditadura Militar deveria ser, sempre, tratado com respeito e ser homenageado.
Se tal Ditadura chegou ao fim isso se deve a todos que, como você, com armas na mão ou não, lutaram contra aquele regime violento, brutal, repressivo e ilegítimo que governou o Brasil durante 21 anos.
Sou professor de História no ensino fundamental público e, neste ano, estou trabalhando o tema da Ditadura Militar e da luta armada contra a mesma. Outro dia exibi o filme 'Lamarca' para os alunos e eles ficaram chocados com as cenas de torturas cometidas pelos agentes da Ditadura contra os prisioneiros políticos. Alguns deles até viraram o rosto para não ver tais cenas.
Com isso, espero ajudar a desenvolver, neles, uma consciência da importância de se respeitar os direitos humanos e de valorizar os direitos e liberdades que desfrutamos e que se hoje isso acontece no Brasil (de podermos nos expressar livremente, de se manifestar, de não sermos presos, torturados devido às nossas idéias e opiniões) isso ocorre devido à luta heróica de pessoas que, como você, se levantaram contra a Ditadura Militar.
A você e a todos os que lutaram contra a Ditadura Militar eu tenho mais é que agradecer e lembrar sempre do combate heróico e corajoso que travaram e em condições tão desfavoráveis.
A todos vocês eu dou o meu Muito Obrigado!!
Marcos D.
Colo aqui comentário pertinente que postarm no site do Azenha (www.viomundo.com.br ). Por lá republicaram o artigo:
Primeiro, ele [Jobim] se esqueceu do inciso XLIV do art. 5º da CF:
"XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;"
E atualmente, os tratados ratificados pelo Brasil possuem a mesma equivalência dos direitos e garantias fundamentais insculpidos na CF, quando tratarem da mesma matéria:
"Art. 5º (...)
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."
E pensar que isso já foi ministro da mais alta corte brasileira.
Corretíssimo e muito explícito o texto. Parabéns pela luta. Leio todos os dias seus textos e não me sinto bem enquanto vc não posta. Como disse o Che, vc é imprescindívlel. Abs.
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