Clovis Rossi tem lá seus maus momentos, como qualquer jornalista. Mas, quando acerta, às vezes produz textos memoráveis, com precisão cirúrgica -- caso de sua coluna de hoje, na Folha de S. Paulo:
"Episódios como o dos 'grampos' contra duas das mais altas autoridades da República, para não mencionar Gilberto Carvalho, o mais próximo assessor do presidente Lula, só demonstram o quanto o atual governo é omisso. Prova-o a seguinte frase do ministro da Justiça, Tarso Genro, falando precisamente sobre interceptações telefônicas: 'Estamos chegando a um ponto em que temos de nos acostumar com o seguinte: falar no telefone com a presunção de que alguém está escutando'.
"Traduzindo: o chefe da Polícia Federal, em vez de se indignar - e agir em conseqüência, o que seria ainda mais relevante -, prefere conformar-se com a sua incompetência, impotência, inapetência ou tudo isso ao mesmo tempo para controlar atividades que desrespeitam o Estado de Direito.
"Se seu chefe, o presidente da República, também fosse menos relapso, teria afastado o ministro no ato, para demonstrar que não compactuava com a omissão do subordinado."
Citação fechada, acrescento que já adivinho a reação dos companheiros de esquerda, caso se dêem ao trabalho de ler este post: "Mas, o Tarso não está do nosso lado na luta pela punição dos torturadores?!"...
Minha sensibilidade é de que o Tarso está do lado do Tarso, como 99% dos devotos do poder.
Empunhou uma bandeira que lhe daria visibilidade, e da forma mais canhestra possível. Quando ele fez anunciar a audiência pública para tratar desse assunto, estava claro para mim e para qualquer pessoa com o mínimo de perspicácia que Lula não mexeria nesse vespeiro.
Dito e feito. Lula preferiu dar força a Nelson Jobim, apaziguando os militares que ainda relutam em viver segundo regras democráticas. E vimos definitivamente afastada a hipótese de revogação, durante o atual governo, da anistia de 1979, o habeas-corpus preventivo que os responsáveis direitos e indiretos por atrocidades concederam a si próprios.
Este era o caminho para um verdadeiro acerto das contas do passado, alcançando não só os trogloditas que cumpriram ordens hediondas, mas também os canalhas de alto escalão que deram tais ordens.
Graças à "incompetência, impotência, inapetência ou tudo isso ao mesmo tempo" de Tarso, o Executivo e o Legislativo tiraram o corpo fora e a tarefa sobrou para o Judiciário.
Então, depois dessa interminável guerrilha jurídica que se prenuncia, o que acontecerá? Os casos finalmente chegarão ao STF, que terá de se manifestar sobre o argumento último dos advogados de defesa, depois de derrubados todos os outros: o de que os réus apenas cumpriam ordens, pois as torturas e assassinatos eram uma política de estado não assumida explicitamente, mas adotada por toda a cadeia de comando.
Sabe-se lá o que o STF decidirá. Mas, infelizmente, foi isto mesmo que aconteceu. Jamais um Ustra ou um Curió deveriam sentar-se sozinhos no banco dos réus, sem terem ao seu lado, p. ex., Jarbas Passarinho e Delfim Netto, cujas canetadas no AI-5 deram sinal verde para tudo que se passou nos porões da ditadura.
Na pior das hipóteses, o STF vai concluir que é errado punir os mandados e poupar os mandantes. Na menos ruim, corroborará o que sabemos ser uma injustiça.
Em qualquer das duas, fica definitivamente afastada a possibilidade de que o Brasil siga os passos da Argentina, do Uruguai e do Chile, onde o longo braço da Justiça alcançou também a caça graúda, não só a miúda.
Finalmente, existe ainda uma chance enorme de que os alvos dessa maratona jurídica escapem da punição pela porta óbvia da morte natural, pois são idosos e a Justiça brasileira coloca um sem-número de manobras protelatórias à disposição de quem tem bons advogados.
De boas intenções está cheio o inferno. E eu não tenho sequer a certeza de que as intenções do Tarso sejam realmente boas, pois podem limitar-se a gambitos na luta pelo poder em que se entredevoram os chacais de Brasília. O certo é que jamais aplaudirei trapalhões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário