A intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, que tira o comando da área de segurança das mãos do governador Fernando Pezão (pertencente ao MDB, o mesmo partido do Presidente Temerário), demonstra, inequivocamente, o poder do crime organizado na antiga capital federal.
A chamada cidade maravilhosa é uma referência cultural brasileira como nenhuma outra, com suas belezas naturais somando-se ao way of life carioca, que representa a síntese da riqueza da alma brasileira miscigenada.
Tenho, pessoalmente, um carinho especial pelo Rio de Janeiro. Não apenas por ter nascido no bairro Rio Comprido (que delimita a cisão social entre a zona sul e a zona norte), mas porque foi lá que a minha mãe dizia ter passado a melhor fase de sua vida, justamente no início dos anos dourados, a década de 1950. Saí do Rio aos quatro anos de idade, mas mantenho o sentimento atávico de pertencimento à cidade que tanto inspirou poetas e músicos a entoarem loas às suas virtudes (hoje tão vilipendiadas!).
Agora a cisão social aprofundada, comum a todas as cidades brasileiras por ser a resultante inevitável do capitalismo em fim de feira, toma características próprias no Rio de Janeiro: lá não se trata apenas da violência desorganizada e resultante da barbárie social que se instala de modo generalizado Brasil afora, mas da escalada de violência decorrente do poder do crime organizado.
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Foto antiga do bairro carioca do Rio Comprido |
Os tentáculos do dito cujo no Rio de Janeiro (cujo modelo está sendo exportado para outros estados do país) consubstanciam-se num poder paralelo criminoso que dá ordens de comportamento aos comerciantes e deles cobra taxas de proteção.
Trata-se, conforme disse o próprio Presidente Temerário, de uma metástase criminosa que se soma à corrupção com o dinheiro público, tornada comum aos muitos organismos estatais.
O tráfico de armas e entorpecentes; o volumoso roubo de cargas nas rodovias; os muitos assaltos diários a caixas bancários, de fazerem inveja aos velhos tempos do Oeste estadunidense; os assaltos à mão armada em plena luz do dia (são poucos os brasileiros que não os tenham sofrido); e o expressivo comércio de receptação de mercadorias roubadas dão ao crime organizado um formidável poder econômico.
Tudo converge de modo socialmente negativo, somando-se à corrupção com o dinheiro público – um indesejado subproduto do capitalismo, justamente porque enfraquece o Estado, o guardião da (des)ordem capitalista, mas que é sua consequência exemplar.
Nessa convergência de atos e fatos autodestrutivos e destrutivos (como tudo no capitalismo, que é contraditório e irracional!), eis que os governantes jungidos ao poder pela ordem capitalista, no afã de se mantarem no poder pela caríssima via eleitoral (*) e ao mesmo tempo se tornarem pessoalmente ricos capitalistas, conspiram contra a função estatal sistêmica praticando a mais deslavada corrupção com o dinheiro público.
A tentativa do Judiciário de coibir tal corrupção representa o sentimento de tal esfera do poder estatal capitalista, de preservação da ordem que o financia, nunca de promoção da justiça lato sensu, no sentido estrutural.
O capitalismo (modo de ser social histórico, não ontológico) ensina a todos, ainda que subconscientemente, a prática da lei da vantagem originada pelo pecado original da extração de mais-valia, razão pela qual não pode ser outra a prática social senão o desenvolvimento, entre as populações economicamente subtraídas e marginalizadas, de organizações criminosas, óbvias resultantes da barbárie que ora se instala.
Para agravar tal quadro, o nível de corrupção praticado nos vários escalões do governo do Rio de Janeiro, que dificulta a sua função de prover minimamente o funcionamento dos serviços públicos essenciais, terminou por afetar a função básica estatal de prover a segurança pública, ensejando a intervenção federal nessa área.
O nível de insegurança pública no Rio de Janeiro equivale ao da quase totalidade das cidades brasileiras, numa demonstração de que o fenômeno não significa apenas uma incompetência localizada da administração pública, mas a resultante do colapso de um modelo de mediação social que se tornou anacrônico.
Todos sabemos que o desemprego estrutural, que joga no ostracismo funcional cerca de 12 milhões de brasileiros economicamente ativos (os quais, somados aos seus dependentes, perfazem ¼ da nossa população, ou seja, um contingente superior a 50 milhões de pessoas), é um forte indutor da criminalidade; se tão somente 2% desse universo migrar para o crime, já nos veremos às voltas com 1 milhão de criminosos.
Como também sabemos, um preso custa caro aos cofres públicos (é mais caro do que um professor), pois ao Estado cabe o dever legal de lhe dar um presídio, alimentação, vestuário prisional, abastecimento de água e energia elétrica, policiais do cárcere, e toda a estrutura do Poder Judiciário (juízes, promotores, funcionários, viaturas, equipamentos, instalações forenses, etc.).
O Brasil gasta alguns bilhões de reais com os presos, outros tantos com os policiamentos ostensivo e preventivo. Se fossem presos todos os condenados pela justiça que estão foragidos, não haveria presídios suficientes para os receber (não temos nem tornozeleiras eletrônicas para todos os condenados!).
Dedução lógica: não há como se manter níveis de sociabilidade na área da segurança pública dentro do modelo capitalista, que encontrou o seu ponto de saturação e não é mais minimamente viável do ponto de vista social.
Poucos detêm 1% de toda a riqueza abstrata produzida, enquanto grandes contingentes populacionais se tornaram supérfluos para a lógica funcional do capital, com os infelizes integrantes deste universo sendo reduzidos à condição de párias sociais. Diante disto, não há solução administrativa e/ou policial que contenha a avalanche criminosa.
Trata-se de uma constatação até assombrosa, mas verdadeira, daí não podermos ocultar tal realidade debaixo do tapete da indiferença sobre as causas de tal descompasso social. Precisamos enfrentá-la com coragem e consciência, de modo a legar aos pósteros uma sociedade verdadeiramente humana. Como disse John Lennon, se você quiser, o mundo pode mudar hoje mesmo.
Perguntaram-me se sou a favor ou contra a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro. Respondi que tal intervenção corresponde à morfina aplicada a um paciente terminal que sofre horrores com a dor causada pela enfermidade; pode aliviar a dor, mas não cura a doença.
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Por Dalton Rosado |
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