terça-feira, 9 de maio de 2017

CORTE DA OEA VAI DISCUTIR O ASSASSINATO DE VLADIMIR HERZOG E A IMPUNIDADE DOS TORTURADORES HOMICIDAS

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI-Codi de São Paulo em 1975, será discutido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA que decidiu acolher as várias denúncias recebidas, de entidades e cidadãos indignados com a total impunidade dos torturadores (que perdura até hoje), abrindo o caso Vladimir Herzog e outros versus Brasil.

O procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, de São Paulo, participará da audiência como testemunha. Em dezembro de 2007, ele protocolou uma representação à Corte Interamericana, historiando os acontecimentos e apresentando as seguintes conclusões:
"...crimes de homicídio, lesão corporal (torturas) e sequestro (desaparecimento forçado) perpetrados pelos órgãos de repressão à dissidência política durante o regime de ditadura militar no Brasil, no período de 1964 a 1985, podem ser reputados crimes contra a humanidade, conforme parâmetros da Organização das Nações Unidas, da Corte Internacional de Justiça e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Esses crimes ainda devem ser objeto de investigação e persecução penal pelas autoridades do Ministério Público brasileiro, e submetidos ao Poder Judiciário, pois não são passíveis de serem considerados prescritos ou anistiados. 
A aplicação da Lei de Anistia aos agentes estatais da repressão e a omissão em investigar e processar os autores desses crimes viola as obrigações que o Brasil assumiu perante a comunidade internacional e submeterá o País a uma provável responsabilização na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 
O assassinato de Vladimir Herzog é um dos casos para os quais se impõe a imediata persecução penal".
Depois, em 2009, denúncias com teor semelhante foram encaminhadas à Corte Interamericana pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional, pela Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos e pelo grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.
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A REPUGNANTE COVARDIA BRASILEIRA
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O aspecto principal da iniciativa da Corte Interamericana é a reabertura das discussões sobre a bizarra anistia de 1979, que igualou carrascos e vítimas; e sobre a repugnante covardia brasileira no tocante à mesma.

Quando o Brasil se redemocratizou, em 1985, a Presidência da República caiu no colo de um político profissional que durante quase 20 anos integrara a bancada governista, justificando e apoiando as práticas ditatoriais, o que o fez co-responsável pelos genocídios e atrocidades que os militares perpetraram.
Não se poderia esperar, portanto, que José Sarney mostrasse grande empenho na remoção do entulho autoritário. 

Muito menos que cumprisse as determinações da ONU para países que se redemocratizam, cujas principais são:
  1. apurar as ilegalidades cometidas durante o regime de exceção;
  2. punir os responsáveis;
  3. ressarcir as vítimas;
  4. tomar providências institucionais para dificultar a repetição dessas ilegalidades no futuro.
Fernando Collor e Itamar Franco também não tiveram interesse ou coragem para colocar a Lei de Anistia em discussão. 

No final de agosto de 2007, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça encerrou seu trabalho de apurar as circunstâncias da morte de militantes durante os anos de chumbo e indenizar as famílias das vítimas cujas mortes haviam sido oficializadas e também daquelas cujos restos mortais evaporaram, pois, como sabemos, tudo que é sólido desmancha no ar...

Reuniu, então, o que apurara num livro-relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade. Quando este foi lançado, contudo, o Alto Comando do Exército lançou uma nota oficial de protesto contra a iniciativa. 
Lula discursou no lançamento do livro. Depois, amarelou.

Ao invés de exonerar imediatamente os responsáveis por insubmissão e quebra da cadeia de comando, o presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recuou de forma indigna: ordenou a seus ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) que não tentassem mais levantar o assunto na esfera do Executivo, instruindo-os a apontarem aos insatisfeitos com a impunidade dos carrascos o caminho do Judiciário.

Recomendou, ademais, que fossem esquecidos os ressentimentos do passado, prestando-se tributo aos militantes que haviam heroicamente lutado contra o regime de exceção e passando-se uma borracha nos crimes dos seus algozes.

Depois, em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal tomou uma das decisões mais escabrosas de sua história, ao considerar válida a auto-anistia que os assassinos e torturadores do regime se outorgaram no ano de 1979, em plena vigência da ditadura.

Tratara-se apenas de uma espécie de habeas corpus preventivo, com a complacência de um Congresso Nacional intimidado e coagido (a aceitação da barganha tinha como contrapartida a libertação de presos políticos e a permissão de volta de exilados). 

Fechadas as portas do Executivo e do Judiciário, uma última esperança de os Ustras e Curiós responderem criminalmente por seus feitos surgiu sete meses depois, com uma sentença da mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que o Brasil investigasse a matança no Araguaia e entregasse os restos mortais dos executados às suas famílias. Eis um trecho fundamental de tal veredito:
"Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia".
Se o Estado brasileiro aceitasse o que é praticamente uma obviedade no Direito Internacional –a de que leis de anistia não têm força legal para impedirem o julgamento de assassinatos e torturas perpetrados por ditaduras–, como poderia sustentar posição diferente com relação aos demais assassinatos e torturas cometidos pela repressão política do regime militar? Era uma oportunidade de ouro para corrigir-se a aberração parida pelo Congresso Nacional e confirmada pelo igualmente acovardado STF.

Logo em seguida houve a troca de governo e, empossada Dilma Rousseff, as entidades e os militantes dedicados à defesa dos direitos humanos passaram a cobrar-lhe, com insistência cada vez maior, o cumprimento da sentença da Corte Interamericana.

Até que, no final de 2011, ela definiu suas linhas de ação: ignorar olimpicamente a sentença da OEA e instituir a Comissão Nacional da Verdade, bem na linha do que Lula pregara: ao invés de mexer em vespeiros, multiplicar os elogios e homenagens aos massacrados.

Agora, como é praticamente certo que a Corte Interamericana repetirá suas conclusões de 2010 (para juristas, não há outro entendimento possível e aceitável!), o Brasil terá outra chance de apagar uma nódoa degradante de sua história.

Mas, se a decisão for anunciada com Michel Temer ainda na Presidência, é também praticamente certo que ele siga os passos da Dilma, optando igualmente pela omissão. Ao que tudo indica, Herzog nunca descansará em paz.   
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VLADO: UM MERO ACIDENTE DE TRABALHO.
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Assassinado no dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog teve o mesmo destino de dezenas de outros combatentes e idealistas que foram vitimados por acidentes de trabalho nos porões da ditadura. Isto para não falar dos executados a sangue-frio depois de presos e dos que tombaram  sob os tiros da repressão, às vezes sem esboçarem a mínima reação, como Carlos Marighella.

Por que a morte do Vlado  repercutiu tanto?  

A de outros jornalistas, como Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira, não despertou tamanha comoção na época. E ambos morreram de forma igualmente chocante: Câmara Ferreira se atracando com os torturadores para forçar um ataque cardíaco, enquanto Mário Alves sofreu um verdadeiro massacre, chegando  a ser empalado com um cassetete dentado.

Há vários motivos para o caso do Vlado ter sido mais emblemático.

Primeiramente, chocou e até hoje choca sabermos que ele se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas o interrogatório para o qual estava convocado.

Por que ele não desconfiou de que poderia ter o mesmo destino que tantos tiveram antes dele? 

Por um motivo simples: em 1975 a tortura já arrefecera, pois a esquerda armada havia sido totalmente dizimada.

O auge da tortura se deu no período 1969/73. Os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando, em São Paulo, a Operação Bandeirantes, incumbida apenas de combater a vanguarda armada, enquanto as organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo atribuição do Deop, que ainda se mantinha dentro de certos limites.

A Oban nasceu clandestina em junho de 1969 – montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas. No início de 1970 foi legalizada, além de congêneres serem criadas nos demais Estados brasileiros, ficando todas as unidades com a denominação de DOI-Codi. Funcionavam em quartéis da Polícia do Exército, com exceção da pioneira paulista, que continuou operando nos fundos de uma delegacia de polícia da rua Tutoia. 

Desde o primeiro momento, teve mais poder do que a estrutura legal dos Deops, chegando a arrancar presos políticos de suas mãos quando bem entendia. E, como a rede dos DOI-Codi's se ocuparia da subversão como um todo, foram retiradas dos Deops quaisquer incumbências de investigação e captura; passaram a atuar apenas na formatação das denúncias a serem encaminhadas às auditorias militares.
Boilesen, o industrial financiador da repressão mais notório.

Para seus quadros, os DOI-Codi's ofereciam remunerações elevadas e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.

A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros. Então, os militantes às vezes portavam somas vultosas consigo ao serem presos. Na VPR e VAR-Palmares, p. ex., cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.

Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados.

Além disto, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as caixinhas de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegarem até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros...
Repúdio à morte de Chael Schreier
Com a derrota da luta armada, o ditador Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo envergonhando a farda.

Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada... e torturada, provando um pouco do próprio veneno.

Então, para atrapalhar a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir, permitindo-lhes alegar que continuavam sendo úteis e necessários. Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo, que lhes era tão vantajo$o.

Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representarem uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como um dos principais alvos de uma suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975. 

E o pobre Herzog talvez tivesse papel de destaque nas tramoias dos provocadores por ser um professor muito querido, com o qual os universitários presumivelmente se solidarizariam, uma vez preso.

Como a ECA era tida pela repressão como um celeiro de subversivos e nela certamente existiam agentes infiltrados, é difícil acreditar que essa base não constasse dos relatórios policiais havia muito tempo. O fato é que, até o final de 1975, não existiu interesse em estourá-la.
Religiosos de 3 confissões oficiaram a missa de 7º dia de Herzog, na Catedral da Sé.


Aí, de repente, não mais que de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva no Departamento de Jornalismo da TV Cultura, com seu mísero 1% de audiência em São Paulo...

Vlado, coitado, não levou em conta o arranca-rabos nos bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas. Quão pouco valia a vida de um homem!

Os torturadores, ao excederem a dose causando-lhe a morte, despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.

Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minarem o DOI-Codi de uma forma que não despertasse resistências na caserna. Assim, Geisel deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte como aquela se repetir.

Previsivelmente, antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, também do PCB. Com isto, forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D'Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.

Por último, devem ser lembrados: 
  • o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime; 
  • a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
  • e a coragem dos líderes religiosos de três confissões, que correram todos os riscos para, com a realização de uma missa ecumênica pela alma de Herzog na catedral da Sé, impedirem que mais esse assassinato fosse acobertado pela ditadura.
Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o semanário Opinião, a ABI, a OAB e a residência de Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e da chacina dos militantes na gráfica do PCdoB.

Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais nas quais eram vendidas publicações alternativas.

Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista fardado que pretendia provocar pânico de conseqüências imprevisíveis durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.

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