domingo, 16 de abril de 2017

ESQUERDISTA QUE NÃO VENDIA SUA ALMA: CARLOS LAMARCA.

Toque do editor
Infelizmente, as delações premiadas da Odebrecht que infestam o noticiário já não deixam dúvidas quanto à promiscuidade de personagens importantes da esquerda com bucaneiros do grande capital, dois universos teoricamente antagônicos, mas que se mancomunaram para a prática desbragada da corrupção.

Acabrunhado, passei bom tempo pensando em companheiros que conheci (pessoalmente ou pelos relatos a seu respeito), que jamais conspurcaram seus ideais cedendo às tentações da sociedade podre engendrada pelo capitalismo. 

Eles são um exemplo do tipo de militantes que precisamos voltar a formar, dentro da perspectiva brilhantemente sintetizada pelo filósofo Vladimir Safatle (vide aqui), de que para a "esquerda só há um caminho possível: a mais austera virtude jacobina em relação ao bem comum".
Carlos Marighella: um titã.

Resolvi então apresentar aqui, para contrapor à melancólica imagem dos ídolos tombados, três exemplos positivos, de companheiros que sempre dignificaram a revolução. Utilizando, para tanto, dois relatos alheios e um da minha autoria. Os anteriores estão aqui e aqui.

Não poderia faltar nesta pequena série um revolucionário que tenha dado a vida pela causa. E, dos dois maiores comandantes da luta armada contra a ditadura militar (período em que centenas de companheiros foram executados covardemente depois de presos, sucumbiram às torturas ou tombaram em confrontos com os inimigos), optei por Carlos Lamarca, por um principal motivo: ele haver travado até o fim uma luta que se tornara suicida, enquanto o titã Carlos Marighella foi surpreendido por vis tocaieiros quando ainda havia esperanças.

A decisão de não sobreviver à derrota era raramente tomada por dirigentes esquerdistas latino-americanos, daí a firmeza do Lamarca (assim como a do Che antes e a do Allende depois) ter lavado a nossa alma! 

Ajudou-nos a apagar a amarga lembrança da rapidez com que João Goulart reconheceu uma derrota ainda não consumada e se pôs a salvo no exterior, deixando o cunhado Leonel Brizola (que se dispunha a organizar a resistência) e o povo brasileiro na mão.
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COMANDANTE CARLOS LAMARCA
 (1937-1971): VENCER OU MORRER!
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O comandante Carlos Lamarca – que nem mesmo presidentes da República ditos esquerdistas ousaram propor (em articulação com parlamentares de sua base aliada) que fosse incluído no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria, embora tenha sido um dos maiores deles – estava debilitado e indefeso quando a repressão ditatorial o executou no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica  vendetta  de gangstêres.

O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como encontrou a morte?

Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez.

Teve enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.

Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros – via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido.

Dos seus melhores momentos, houve dois que me sensibilizaram particularmente.

Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de quedas em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas fachadas – qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.

Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.

Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.

Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados – na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando,  que me designou para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.

Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.

Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.

Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo – tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar. [Foi, disse depois, a primeira vez em que atirou num ser humano. Temendo não haver acertado, fez um segundo disparo. Pelos jornais ficamos sabendo que ambos atingiram o policial em cheio.] 

Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 – e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.

Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.

Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante – afinal, as dantescas circunstâncias reais da morte do Bacuri ficaram conhecidas na Organização ("Além de hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda a parte, apresentava dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados", segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos). 

Mesmo assim Lamarca não arredou pé, usando sua autoridade até o limite para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR.

E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros – quanto à sua salvação.

Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.

Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram das mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a ideia de fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.

Doeu – e como! – vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.

Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.

Merece, como poucos, nosso respeito e admiração. (Celso Lungaretti)

Assista na íntegra a cinebiografia dirigida por Sérgio Rezende, 
com Paulo Betti no papel do comandante Carlos Lamarca.

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