Toque do editor |
Uma música pouco lembrada da época dos grandes festivais de MPB dizia que "a realidade é a verdade/ e é o que mais custa crer". Infelizmente, as delações premiadas da Odebrecht que infestam o noticiário já não deixam dúvidas quanto à promiscuidade de personagens importantes da esquerda com bucaneiros do grande capital, dois universos teoricamente antagônicos, mas que se mancomunaram para a prática desbragada da corrupção.
Acabrunhado, passei bom tempo pensando em companheiros que conheci (pessoalmente ou pelos relatos a seu respeito), que jamais conspurcaram seus ideais cedendo às tentações da sociedade podre engendrada pelo capitalismo.
Eles são um exemplo do tipo de militantes que precisamos voltar a formar, dentro da perspectiva brilhantemente sintetizada pelo filósofo Vladimir Safatle (vide aqui), de que para a "esquerda só há um caminho possível: a mais austera virtude jacobina em relação ao bem comum".
Resolvi então apresentar aqui, para contrapor à melancólica imagem dos ídolos tombados, três exemplos positivos, de companheiros que sempre dignificaram a revolução. Utilizarei, para tanto, dois relatos alheios e um da minha autoria.
O primeiro, um característico militante da velha guarda do partidão, era o pai da Maria das Graças Lima (hoje uma eminente socióloga baiana, com o nome de Maria Palácios), a jovem colega de escola que me guiou para o movimento secundarista, mudando toda a minha vida.
Parecia um personagem dos primórdios de Jorge Amado: o trabalhador que voltava para casa ainda vestindo seu macacão, humilde, quase apagado, mas com um brilho inconfundível no olhar: a esperança de que um dia a justiça social prevaleceria, apesar de todos os percalços e decepções. Aceitando estoicamente a necessidade de se mudar com a família para bem longe da Bahia, em meio às trevas que haviam descido sobre o País em 1964.
Esta crônica sobre ele só vim a conhecer muito tempo depois.
Esta crônica sobre ele só vim a conhecer muito tempo depois.
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Por Antônio Torres |
TRIBUTO A UM COMUNISTA
Não, ele não espetava padres nem comia criancinhas, conforme a lenda apregoada pelos párocos em seus sermões dominicais, que transformavam os da sua classe em bichos-papões, sanguinários arautos do medo e do terror, todos condenáveis hereges. Cruz credo!.
As exéquias a Apolônio de Carvalho me fizeram lembrar do comunista que conheci longe dos fervores religiosos. E em nada ele se assemelhava a um monstro. A bem dizer, foi o meu anjo da guarda.
Descobri isso no meio de uma conversa que tivemos num banco de uma praça, na cidade de Alagoinhas, Bahia. Ano: 1959. Eu estava lá pensando na vida, sem saber o que fazer dela. Havia terminado o curso ginasial e o serviço militar. E estava sobrevivendo com o salário-mínimo de vendedor-pracista de uma indústria de bebidas.
Cansado de rodar o dia inteiro em cima de uma bicicleta com uma pasta na garupa, recheada de mostruários, um talão de pedidos e um maço de promissórias vencidas, sentei-me naquele banco para fazer um balanço.
Estava preocupado com as vendas que fizera para bodegueiros endividados, aos quais já me afeiçoara, a ponto de me render aos seus desesperados apelos: se ficassem sem mercadorias, aí é que não iam poder pagar as contas atrasadas.
Essa, porém, não iria ser a lógica do patrão, que naturalmente me poria a correr em busca de outra ocupação, já que como vendedor não passava de uma nulidade.
Foi então que chegou o comunista, com um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado daqui do Rio para distribuição naquelas bandas. Chamava-se Mário, figura de utilidade reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Ele sentou-se ao meu lado. Acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou e puxou assunto.
Depois de dizer que havia lido uns artigos que eu vinha escrevendo para uma gazetinha da cidade, perguntou-me se tinha algum plano para o futuro. ''Escrever.''
Não se mostrou surpreso com a minha resposta. ''Quer ser jornalista?'' Não foi a sua pergunta o que me surpreendeu, mas a sua garantia de que, se era isso o que eu queria, ele poderia me abrir uma porta. Na capital!
No dia seguinte, às 9 horas da manhã, aquele borracheiro que vivia todo sujo de graxa, estava à minha espera na estação ferroviária, de acordo com o combinado.
De banho tomado e vestido num impecável terno branco. E já com dois bilhetes para o trem mais caro e mais bonito, tanto que era chamado de Marta Rocha, em alusão à beldade baiana que por duas polegadas a mais ou a menos (já não me lembro) não conquistou o cetro de rainha da beleza universal.
Ao chegar a Salvador, logo nos vimos diante de uma recepcionista. ''Quem deseja falar com o doutor João Falcão?'' Não foi preciso anunciar o nome. Uma voz veio lá de dentro: ''É você, Mário?''. Em questão de minutos atravessamos uma rua. E chegamos ao prédio do Jornal da Bahia, na companhia do seu dono.
Lá fiquei. Mário se foi. Deixando-me um forte motivo para querer bem aos comunistas.
As exéquias a Apolônio de Carvalho me fizeram lembrar do comunista que conheci longe dos fervores religiosos. E em nada ele se assemelhava a um monstro. A bem dizer, foi o meu anjo da guarda.
Descobri isso no meio de uma conversa que tivemos num banco de uma praça, na cidade de Alagoinhas, Bahia. Ano: 1959. Eu estava lá pensando na vida, sem saber o que fazer dela. Havia terminado o curso ginasial e o serviço militar. E estava sobrevivendo com o salário-mínimo de vendedor-pracista de uma indústria de bebidas.
Apolônio de Carvalho resistiu a duas ditaduras |
Cansado de rodar o dia inteiro em cima de uma bicicleta com uma pasta na garupa, recheada de mostruários, um talão de pedidos e um maço de promissórias vencidas, sentei-me naquele banco para fazer um balanço.
Estava preocupado com as vendas que fizera para bodegueiros endividados, aos quais já me afeiçoara, a ponto de me render aos seus desesperados apelos: se ficassem sem mercadorias, aí é que não iam poder pagar as contas atrasadas.
Essa, porém, não iria ser a lógica do patrão, que naturalmente me poria a correr em busca de outra ocupação, já que como vendedor não passava de uma nulidade.
Foi então que chegou o comunista, com um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado daqui do Rio para distribuição naquelas bandas. Chamava-se Mário, figura de utilidade reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Ele sentou-se ao meu lado. Acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou e puxou assunto.
O abnegado professor comunista de Os companheiros |
Não se mostrou surpreso com a minha resposta. ''Quer ser jornalista?'' Não foi a sua pergunta o que me surpreendeu, mas a sua garantia de que, se era isso o que eu queria, ele poderia me abrir uma porta. Na capital!
No dia seguinte, às 9 horas da manhã, aquele borracheiro que vivia todo sujo de graxa, estava à minha espera na estação ferroviária, de acordo com o combinado.
De banho tomado e vestido num impecável terno branco. E já com dois bilhetes para o trem mais caro e mais bonito, tanto que era chamado de Marta Rocha, em alusão à beldade baiana que por duas polegadas a mais ou a menos (já não me lembro) não conquistou o cetro de rainha da beleza universal.
Ao chegar a Salvador, logo nos vimos diante de uma recepcionista. ''Quem deseja falar com o doutor João Falcão?'' Não foi preciso anunciar o nome. Uma voz veio lá de dentro: ''É você, Mário?''. Em questão de minutos atravessamos uma rua. E chegamos ao prédio do Jornal da Bahia, na companhia do seu dono.
Lá fiquei. Mário se foi. Deixando-me um forte motivo para querer bem aos comunistas.
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