sábado, 16 de junho de 2012

PAULO ABRÃO COLOCA EM XEQUE A ANISTIA DE 1979

Secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão foi contundente em sua palestra no seminário Direito à Verdade, Informação, Memória e Cidadania (que a Comissão da Verdade do estado de São Paulo e outras entidades promoveram), vindo ao encontro de posições aqui defendidas desde 2008. Eis alguns trechos, com meus comentários:

"Vivemos no Brasil uma transição pactuada, controlada, distinta da Argentina, onde a transição se deu por ruptura, onde as forças militares saíram desmoralizadas diante de uma crise econômica e, depois, pelo episódio das Malvinas. No Brasil não houve essa ruptura. Nossa característica é a dita transição lenta, gradual e segura, que está posta até hoje. E o marco jurídico fundante dessa transição controlada é a Lei de Anistia de 1979. É por isso que toda e qualquer vez que quisermos discutir justiça de transição, reparações, comissão da verdade, será inafastável discutir a dimensão da anistia."
Foi a bola que eu cantei em 2008, quando Tarso Genro e Paulo Vannucci, derrotados por Nelson Jobim na disputa interna que se travou no Ministério do Lula, tiraram a luta pela punição dos torturadores dos trilhos, desviando-a para os tribunais. Afirmei de pronto que, face à omissão do Executivo e do Legislativo,   também o Judiciário se esquivaria de suprimir o embargo à punição dos algozes corporificado na Lei de Anistia. Dito e feito.

"O Congresso que aprovou a Lei da Anistia de 1979 era um congresso controlado. Um terço de seus senadores eram biônicos [indicados diretamente pelo Executivo]. O conceito deles de anistia não era o mesmo conceito de liberdade que existia na sociedade. O propósito deles era o esquecimento e a impunidade. Discordo da ideia de que foi um momento de pacto da sociedade brasileira. O projeto apresentado pelo governo foi aprovado por 212 votos a 206. E vêm me dizer que houve pacto? Que pacto?"
Correto. Faltou acrescentar que os oposicionista foram coagidos a engolir a inédita autoanistia dos ditadores e seus esbirros, porque se tratava da contrapartida da permissão de volta dos exilados e da libertação de parte dos presos políticos (aos que participaram da luta armada só foram concedidas, e num segundo momento, reduções de pena suficientes para que fossem também libertados).

"...[o Judiciário] tem uma dívida política com a sociedade, pelo papel que cumpriu na ditadura militar. Onde estavam os juízes quando ocorriam prisões arbitrárias? Quem foram os juízes que negaram habeas corpus aos presos políticos criminalizados pela ditadura? A acusação e o enquadramento na Lei de Segurança Nacional dos perseguidos políticos eram feitas por promotores civis, não militares. Esse poder também tem que promover um acerto de contas com a sociedade."
Vale ressalvar que os juízes só puderam conceder habeas corpus aos enquadrados na LSN até dezembro de 1968, quando o AI-5 lhes usurpou tal direito. Mas, enquanto ainda estavam aptos a fazê-lo, muitos se omitiram, seja por compartilharem o viés totalitário, seja por covardia pura e simples.

"Os nossos juristas não conhecem, não aplicam, não fundamentam suas decisões no direito internacional. Isso é péssimo, porque deixamos de fazer parte de um processo civilizatório inaugurado no pós-guerra, com os tribunais internacionais. Foi quando compreendemos que, se deixarmos os genocídios, as torturas, as execuções sumárias e os desaparecimentos de pessoas se generalizarem, estamos pondo em risco a espécie humana. Houve um pacto pós 2ª guerra, com novas bases éticas, o reconhecimento dos crimes de lesa humanidade. O contrário dessa tese é a formulação da regra de ouro do autoritarismo, com a seguinte mensagem: ditadores do futuro, genocidas do futuro, algozes das democracias, façam o que quiserem, quando tiverem o poder. Só não esqueçam de, antes de sair, aprovarem uma lei perdoando a vocês mesmos. Se fizerem isso, podem dormir tranquilos."
Costumo dizer isto de forma mais sucinta: se a Hitler houvesse ocorrido tal cautela, não teria existido o julgamento de Nuremberg. Pelo menos segundo o estapafúrdio entendimento do nosso Supremo Tribunal Federal...

"Vivemos um novo momento histórico, que chamo da terceira fase da luta pela anistia. Ele é demarcado por duas leis, a de acesso à informação e a que cria a Comissão da Verdade. As duas atingem o âmago de uma cultura instalada há muito tempo, a cultura do silêncio e do sigilo. Nunca sistematizamos informações sobre a escravidão, a dizimação dos povos indígenas, a guerra do Paraguai. É a primeira vez na história que é criado um órgão de estado para sistematizar um conjunto de violações. Isso rompe com a cultura de não enfrentamento e projeta para o futuro a imagem de uma sociedade que sabe se organizar e resistir contra a opressão."
Menos, Abrão, menos. Como bem disse o Carlos Lungarzo, só são  do ramo  dois membros da Comissão da Verdade (Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha), enquanto os outros cinco se especializam em "bacharelismo confessional, política conservadora e generalidades". E os militares estão fazendo troça da Lei de Acesso à Informação (vide aqui, aqui e aqui). Entre os discursos e a prática há enorme diferença.

"A Comissão da Verdade não veio para botar uma pedra em cima da história. Muito pelo contrário. A Comissão da Verdade poderá gerar novos efeitos no campo da reparação, novas memórias e, quem sabe, potencializar os mecanismos de Justiça. Ninguém poderá impedir que o Ministério Público Federal, no exercício de suas funções, tenha acesso à documentação produzida pela comissão para ingressar com ações."
A pergunta que não quer calar é: haverá ainda algum torturador vivo quando, depois dos trâmites demoradíssimos característicos da nossa Justiça, uma eventual sentença condenatória chegar à fase de execução? Nem a pau, Juvenal. Os ditadores, p. ex., já morreram todos. E, dos 17 signatários do AI-5, sobraram apenas Delfim Netto e Jarbas Passarinho -- aos quais, aliás, até agora ninguém lembrou de responsabilizar por terem dado sinal verde para todas as atrocidades cometidas no pior período do terrorismo de estado.

Um comentário:

Carlos Alberto ;Bento da Silva disse...

Celso, infelizmente não dá para acreditar que a "Comissão da Verdade" irá produzir documentos necessários e importantes para gerar alguma ação, qualquer que seja. No meu entendimento, pela origem desta, irá apenas homologar o obvio do nada. Lamentavelmente, trata-se unicamente de uma comissão natimorta, e de efeitos psicológicos

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