sexta-feira, 15 de junho de 2012

GRANDE CARLÃO! (1945-2012)

Quando atuei como crítico de cinema, entre 1979 e 1984, fiquei conhecendo boa parte dos diretores e atores do cinema paulista. Aí, em 1989, ao recordar a  nouvelle vague  num artigo de efeméride para a Agência Estado (Nouvelle vague faz 30 anos esta noite), incluí declarações dos dois cineastas que, além de serem dela herdeiros, eram aqueles com os quais eu tive mais afinidade: Jairo Ferreira e Carlos Reichenbach.

O Jairo morreu em 2003 e o Carlão, nesta semana. É um bom motivo para republicar o velho artigo, até porque prefiro me lembrar deles como eram quando os entrevistei. É sempre assim que me recordo dos amigos já partidos.

 Seberg e  Belmondo: Acossado.
Em 1959, três críticos dos Cahiers du Cinema que haviam empreendido uma implacável revisão crítica do cinema recente, trocaram a posição de estilingue pela de vidraça, lançando seus primeiros longa-metragens, corporificação dos conceitos teóricos que vinham amadurecendo ao longo dos anos anteriores.

Em fevereiro estreou Nas Garras do Vício (Le Beau Serge), de Claude Chabrol; em maio, Os Incompreendidos (Les 400 Coups), de François Truffaut; e em julho, Acossado (A Bout de Souffle), de Jean-Luc Godard.

Não houve estouros de bilheteria, mas o impacto entre a crítica, os cinéfilos e o pessoal do meio cinematográfico foi total, em 1959 e nos anos seguintes, daí o fenômeno receber da mídia uma designação charmosa, tomada da empréstimo de um artigo sobre a juventude francesa que L'Express publicara ano e meio atrás: nouvelle vague.

Mas, quando nasceu e quem realmente fazia parte da  nova onda?

As interpretações são múltiplas, já que nunca houve um movimento propriamente dito, mas sim um estilo, um certo jeito de fazer cinema, com pontos de contato e de diferenciação entre os vários cineastas.

Do núcleo de críticos dos Cahiers faziam parte também Eric Rohmer e Jacques Rivette.

O ótimo  Os Incompreendidos, do Truffaut.
E, entre os diretores que se revelaram à mesma época, estão Alain Resnais, Louis Malle, Agnes Varda, Philippe de Broca, Jacques Demy, Jacques Rozler e, até, Roger Vadim.

Então, há quem situe o início da nouvelle vague em 1956, quando Vadim e Brigitte Bardot sacudiram décadas de puritanismo nas telas com o deslumbrante ...E Deus criou a mulher (Et Dieu Crea la Femme).

A Cinemateca de Paris prefere o ano de 1957, em que o pessoal do Cahiers realizou seus primeiros curta-metragens e Louis Malle estreou nos longas com Ascensor Para o Cadafalso (Ascenseur Pour L'Echafaud).

E por que não 1958, ano do escândalo mundial de Os Amantes (Les Amants)? Foi neste filme que Louis Malle teve a ousadia de sugerir -- nada é realmente visto -- a prática de felação, causando comoção talvez maior do que a provocada em 1972 pela sodomia  soft  de Último Tango em Paris.

Mas 1959 tem a maioria das preferências, não só por ser o ano do  début  do trio central da  nouvelle vague, mas também porque houve duas participações importantes dessa estética emergente no Festival de Cannes, em maio: Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima Mon Amour), de Resnais, e Os Incompreendidos, que valeu Truffaut o prêmio de direção.

Nas Garras do Vício: rebelde com causa.
Isto, mais o próprio fato de a Palma de Ouro ter sido arrebatada por um filme francês -- o meramente exótico Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus -- chamou a atenção da mídia internacional para a  nova onda.

E o efeito se completou com a estréia de Acossado, colocando em primeiro plano o talento ousado e polêmico de Godard e entronizando no cinema moderno a figura do anti-herói, que seria presença dominante na década de desencanto e contestação subsequente (os anos 60). Até o western italiano beberia nessa fonte.

POBRES, MAS CRIATIVOS - Além do quem  e  quando, outra pergunta difícil, no caso da  nouvelle vague, é  o que.

Para não enveredarmos por discussões tortuosas, fiquemos com os poucos pontos de consenso.

Primeiro, trata-se de um cinema pobre, feito com equipamento leve e cenários reais. Os filmes iniciais foram financiados por heranças, empréstimos e até dotes de casamento, com a precariedade de recursos acabando por ser revertida em riqueza criativa. Assim, os diretores desenvolveram novos truques de edição, como os  cortes-saltos.

Godard redescobriu as cartelas do cinema mudo, que ganharam nova função: a de comentar a ação com citações de poetas, filósofos, estadistas, etc.

Cena final de Acossado, filmada na rua.
Também foi resgatada do cinema silencioso a  Íris, recurso através do qual se isola um detalhe da imagem numa tela completamente negra.

Dois avanços tecnológicos foram importantes para respaldar a nova proposta estética: a Cameflex, câmera leve que proporcionava a mesma rigides de imagem da câmera pesada; e a Tri-X, película bem mais rápida que as anteriores, facilitando as filmagens à noite, com luz natural.

A Cameflex permitiu efetuar tomadas perfeitas de quaisquer ângulos e até com a câmera em movimento, dando origem à célebre frase do Godard: "uma idéia na cabeça e uma câmera na mão".

Um   travelling  marcante de Acossado, p. ex., foi feito com uma Cameflex sobre uma cadeira de rodas, improvisação impossível com equipamento pesado.

Quanto à Tri-X, a ela se deve o estranho efeito de a naturalidade das sequências noturnas de Alphaville, com sua iluminação meticulosa, parecer extremamente artificial.

Outra característica fundamental da  nouvelle vague  foi contrapor ao  star-system  dos EUA a concentração de todas as funções criativas nas mãos do diretor. Assim, além de dominar a encenação, ele passa a escrever o roteiro, fazer a montagem, interferir em cada detalhe de fotografia, trilha musical, etc., tornando-se o autor indiscutível da obra.

Nos próprios créditos esta marca se evidencava, já que passou a ser usado o registro de "um filme de...", ao invés de "dirigido por...". Esta postura foi antecipada teoricamente por Alexandre Astruc, ao recomendar que o cineasta utilizasse sua câmera da mesma forma que o escritor usa sua caneta (a fórmula da camera-stylo).

Godard se tornou o exemplo extremado do  cinema do autor, ao imprimir sua personalidade de uma maneira explícita nos filmes, a ponto de ser quase o personagem oculto de todos eles.

O festival que não houve.
O espectador tinha a impressão de que o principal acontecia atrás das câmeras e não à sua frente. Desde o Cidadão Kane, de Orson Welles, ninguém deixava tão à mostra seu ego exuberante.

Ao longo da década de 60, cada cineasta da   nouvelle vague  foi desenvolvendo seu estilo individual e se distanciando cada vez mais da bagagem comum de um grupo que, aliás, desde o início era heterogêneo.

O fim da nouvelle vague pode ser fixado em qualquer ponto da década, mas, em respeito ao traço épico da formação francesa, o melhor divisor de águas é o Festival de Cannes de maio de 1968, interrompido sob a suposição de que a verdadeira arte estava nas ruas e barricadas.

Foi um erro: o que se esgotava era a fase de maior criatividade de uma geração brilhante.

O cinema não acabou em 1968 e, exatamente nas pegadas de Godard, Chabrol, Truffaut, Resnais e Malle (principalmente) viriam Herzog, Wenders, Fassbinder, Alain Tanner, Claude Goretta, Harry Kumel, Nagisa Oshima, os nossos Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, o filipino Lino Broka, os novos cinemas da Geórgia e de Taiwan...

A imaginação não está no poder, seja na política ou nas telas, mas os únicos avanços reais da sétima arte têm se dado nas trilhas do  cinema do autor.

Quanto ao velho burocrata de direção hollywoodiano, é um erro imaginar que ele tenha sido reabilitado: o verdadeiro artífice do cinema de massas, hoje, é o técnico de efeitos especiais...

CARLOS REICHENBACH: PERSONAGEM À DERIVA

"O pessoal da  nouvelle vague  teve uma trajetória que começou no cineclubismo, daí passou à crítica e, afinal, chegou à prática. Foi o cinema feito por quem pensava o cinema. E nisto eu me identifico com ele."

A afirmação é de Carlos Reichenbach, um dos melhores e mais prolíficos cineastas brasileiros nas últimas décadas.
O grande Carlão: gente finíssima!

Para o  Carlão, o principal na  nouvelle vague  é o lado do comportamento, "o registro de personagens à deriva, desajustados e desagradáveis".

Os grandes marcos, no seu entender, são mesmo os três filmes de estréia do pessoal dos Cahiers: Nas Garras do Vício (que ele viu "umas 20 vezes" e considera o mais importante, por introduzir "um rebelde com causa"), mais Os Incompreendios e Acossado.

Assim ele analisa o trio central de cineastas:
"Godard era eminentemente urbano, político por excelência. Truffaut, o cineasta da intimidade, o mais afetivo, o mais amoroso, talvez porque a vivência dele tenha sido a mais marginal de todas. E Chabrol dissecou o universo da classe média baixa, posição com a qual hoje eu me identifico, acho que os cineastas devam buscar os personagens comuns, não os de exceção".
Reichenbach vê em Louis Malle um diretor que, sem fazer parte do núcleo central da  nouvelle vague, teve algumas características semelhantes em termos estilísticos, principalmente em Ascensor Para o Cadafalso e Os Amantes.

Já Alain Resnais, a seu ver, "é   nouveau roman, não  nouvelle vague, pois rilmava em estúdio, com muito dinheiro, usando escritores como roteiristas para desenvolver uma dramaturgia literária, clássica".

O Desprezo: Brigitte Bardot estava no auge.
Da mesma forma, acrescenta, muitos cineastas que surgiram naquela época, como Agnes Varda e Phillippe de Broca, possuíam "apenas pontos de contato formais com a  nouvelle vague, mas, dramaticamente, não tinham nada a ver".

Embora hoje aprecie mais Chabrol e considere que o único a se manter fiel às característica da  nouvelle vague   até o fim tenha sido Truffaut, o Carlão reconhece ter sofrido maior influência de Godard:
"Foi com ele que aprendi a fazer um filme comercial subvertendo-o, abrindo para discussões mais profundas. Neste sentido, O Desprezo é insuperável, vi umas 30 vezes. Inclusive, formalmente, tem algumas sequências de grande arte".
JAIRO FERREIRA: FIM DO ACADEMICISMO

"Formalmente, a  nouvelle vague  tomou as inovações do pioneiro George Meliés e do pessoal da  avant-garde, como Jean Epstein, Lous Delluc, René Clair e Louis Buñuel. Eles usavam equipamento leve, filmavam em cenários reais e usavam todo tipo de experiências", avalia o jornalista, crítico e cineasta Jairo Ferreira, autor do livro Cinema de Invenção e dos filmes O Vampiro da Cinemateca e O Ínsigne Ficante.

Jairo reconhece, entretanto, que a  nouvelle vague  teve um papel importante: 
"Ela sacudiu o bolor do cinema europeu. Desacademizou a linguagem cinematográfica, tornando-a muito mais dinâmica, elástica e ágil.

Foi um cinema de transgressão, que impõe a qualidade poética da imagem e os diálogos cortantes, sem ranço literário".
O saudoso Jairo: crítico, cineasta, ator.
Segundo ele, a influência da  nouvelle vague  no Brasil se deu, primeiramente, quanto à forma de realização -- a busca de soluções criativas para compensar a exiguidade do orçamento -- durante o  cinema novo: "Nesta fase, só o Ruy Guerra estava sintonizado com o espírito da coisa. Os Cafajestes é pura  nouvelle vague".

Já a geração seguinte, do  cinema marginal  ou   udigrudi, veio toda nas pegadas de Godard, no entender de Jairo Ferreira. Ele cita Rogério Sganzerla, Júlio Bressante, Neville D'Almeida, Luís Rosemberg Filho, Eliseu Visconti Cavaleiro, Andrea Tomacci, Francisco Luís de Almeida Salles, Carlos Reichenbach e Ivan Cardoso como os herdeiros brasileiros da   nouvelle vague, só deixando de fora Ozualdo Candeia ("remonta mais a Buñuel e Pasolini") e o primitivo José Mojica Marins.

"Às vezes a coisa descambava até para a imitação, como o suicídio do Bandido da Luz Vermelha, evidentemente copiado do Pierrot Le Fou, do Godard."

Para Jairo, 1968 foi o último grande ano de inovação no cinema mundial:
"Quando Godard fechou o Festival de Cannes, marcou a reviravolta da nouvelle vague. Depois, aqueles cineastas nunca mais foram os mesmos.

Só o Godard e o Jacques Rivette se mantiveram mais ou menos experimentais. O Truffaut se perdeu, passando a fazer os mesmos filmes que ele combatia quando era crítico.

E a nouvelle vague foi o último grande movimento. Não será a hora de um novo?".

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