Gabriel Garcia Márquez em seu famoso romance O amor nos tempos do cólera deixa de lado seu tradicional realismo mágico para falar do amor.
O cólera, no caso, se refere a uma doença intestinal causada por uma bactéria, muito comum nos países pobres, que não impede a cena do amor tardio, mas realizado, e por ele narrado com a maestria do grande literato colombiano que é e que ganhou o Prêmio Nobel de literatura do ano de 1982 por sua magnum opus Cem anos de solidão.
A paráfrase aqui usada serve para evocar os tempos atuais se modifica se usarmos a preposição “a” para a ligação com palavra cólera, que assim expressa sentimento de raiva e fúria, mudando de significado e dando sentido a este artigo de avaliação desses tempos coléricos.
No seu famoso romance, Gabo, como era conhecido pelos seus, quis fazer a contraposição entre a dor e o amor para dizer que são sentimentos intrínsecos à existência humana e que podem coexistir e coexistem, apesar de tudo, e para a nossa sobrevivência, felizmente, no que diz respeito ao amor.
Vivemos tempos esquisitos no sentido negativo desta palavra - a cólera - no qual se invertem conceitos de virtudes e o mal passa a ser encarado como um bem como se houvesse nas mentes humanas um torpor induzido por um mecanismo esquizofrênico de comando que contraria os próprios interesses dos indivíduos sociais transformados em cidadãos; como numa ação suicida.
O ser mercantil, que formatou a mercadoria e concomitantemente foi por ela formatado, age de tal forma inconscientemente induzido pela avidez de obtenção do quase único meio de sobrevivência que formatou socialmente - trabalhar para ganhar dinheiro para comprar mercadorias em dinheiro -, que o meio se transformou num fim em si, e passou a adorá-lo.
É evidente que todos nós gostamos e precisamos de um copo d’água para matar a sede; ou de um bom prato com alimentos bem temperados, que são substâncias concretas indispensáveis à sustentação da vida. Mas, para obtê-las, precisamos do dinheiro, algo abstrato, e é nesse momento e circunstância que passamos a idolatrar uma abstração numérica pelo simples fato dela ser o meio de obtermos o que precisamos.
O meio se transforma num fim em si adorado, como dissemos.
O que é mais greve nessa forma de relação social estabelecida por critérios de sociabilidades negativos inconfessáveis, mas tidos equivocadamente como “facilitadores” de vida social, tal qual um deus formatado pelos homens, é que a sua essência constitutivas intrínseca é desconhecida - porque esse segrego não lhes é esclarecido e ensinado -, ou seja, amamos o nosso algoz sem conhecer a sua negatividade, tal qual um toxicômano que se ilude com a alegria inicial, momentânea e ilusória da droga entorpecente que vai lhe escravizar.
Costumo dizer que a mercadoria é uma droga; mas, coincidentemente, a droga é uma mercadoria. O traficante de drogas não consome a mercadoria que vende - embora, segundo o síndico Tim Maia, o Brasil é tão descolado da real que por aqui há traficante viciado - mas é com a dependência dos seus “clientes” a elas que realiza o objeto do seu interesse: o dinheiro e a acumulação do mesmo.
Como explicar a adesão do eleitorado inconsciente aos postulados da direita, que lhe são adversos na essência?
Só se pode explicar esse fenômeno se se compreender que é a dependência do eleitor ao valor - representado pelo dinheiro, a mercadoria especial, e única que não tem valor de uso, bem como pela mercadoria sensível, que tem valor de uso e de troca -, inconsciente da essência de tal mecanismo, o fetichismo que faz com que ele queira assumir o lugar do seu escravizador a quem admira e desejar ficar rico, pois o capitalista age como gerente privilegiado do capital que o acumula e não quer e não pode distribui-lo.
A cantilena ilusória da direita, num cenário de depressão capitalista no qual a obtenção - redução da média de salários e desemprego estrutural - e poder de compra do dinheiro, causada pela inflação, estão cada vez mais precarizadas, e que seus candidatos anunciam a solução do problema - dizem, do alto de suas prepotências enganadoras, que o mal, causado pela droga mercadoria, pode ser solucionado com uma dose maior do próprio mal -, para um ser que quer assumir o lugar de privilégio patronal e de seu representante político, torna-se muito atraente, ainda que a cada ciclo eleitoral sua ilusão se desvaneça e acredite no surgimento de um novo salvador da pátria como se todos sofressem de amnésia coletiva causada pelo torpor mercantil.
Além dessa explicação fundamental, podemos dizer que o interesse imediato de obtenção de recursos e/ou privilégios pelo eleitor, que permeia todas as classes sociais, influi na eleição de modo complementar e decisivo que transforma todas as eleições numa corrida econômica de gastos e interesses particulares, que em tudo e por tudo é alheio ao interesse médio coletivo e de uma verdadeira participação social dos indivíduos conscientes na gerência dos seus próprios destinos.
Disse Giordano Bruno, frade dominicano italiano, a caminho da fogueira, em condenação da Igreja Católica pela acusação de crime de heresia contra a teologia, já em 1.600: “que ingenuidade pedir a quem tem poder para mudar o poder”.
A beleza e o afeto são inconciliáveis com a lógica do capital, justamente porque não há beleza e nem virtude na guerra concorrencial de mercado, mas apenas egoísmo e prepotência do vencedor sobre o vencido, que traz infelicidade a ambos, como nas vitórias pírricas.
Exemplo de beleza da arte revolucionária é a estética que narra a beleza do sentimento contra a crueldade da truculência do regime de exceção expressa pela arte cênica, com Fernanda Montenegro e sua filha Fernanda Montenegro, no filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, que é um forte libelo acusatório contra aqueles que ousaram matar premeditadamente em nome da “defesa da democracia” e obedientes ao comando da chamada “operação condor” orquestrada pelos Estados Unidos para a América do Sul.
Mas para confirmar a força do sentido da beleza como capacidade transformadora, por paradoxal que pareça, um filme que aborda uma prisão seguida de morte por militares a um parlamentar que naquele momento era são e indefeso, é mais a história de uma família carioca - é locado na beleza natural de paisagem deslumbrante da cidade do Rio de Janeiro - de classe média com seus dramas e seu significado para os dias de hoje. Maravilhoso.
Agradeço ao Alder Teixeira, pelo resgate da frase de Fiodor Dostoiévski na qual ele diz que “a beleza salvará o mundo”. Ora, do ponto de vista filosófico, a beleza é gênero do qual muitas espécies de virtudes nela se inserem, e entre elas o afeto que distingue o ser humano sensível do insensível.
A direita é insensível ao drama humano tal qual um Mefistófeles sedutor, que na essência é um feio e cruel demônio que se traveste de uma cantilena de falso progresso capturando almas inocentes através da apropriação indébita dos seus esforços, corpos e mentes transformados em tempo-valor.
Mas dá pra mudar isso! (por Dalton Rosado)
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