quinta-feira, 5 de setembro de 2024

LINGUAGEM NEUTRA DÁ ILUSÃO DE MUDANÇA, MAS O EDIFÍCIO CAPITALISTA, EMBORA CONDENADO, CONTINUARÁ EM PÉ

F
oi de um ridículo atroz o episódio em que amigos da onça contratados pela campanha do Guilherme Boulos decidiram alinhar sorrateiramente o candidato à prefeitura paulistana com aquela besteirinha da linguagem neutra, alterando o Hino Nacional na calada da noite e fornecendo, de mão beijada, um ótimo trunfo propagandístico para os adversários.

Aconteceu o óbvio: rejeição esmagadora da iniciativa por parte dos cidadãos comuns, o que obrigou Boulos a renegar as peças promocionais adulteradas, declarando que não concordava com aquilo que havia sido feito em seu nome. 

Que imagem patética ele teve de projetar, tipo marido traído, o último a saber das coisas! Quem quer um prefeito desses?

No entanto, o  que mais o Boulos poderia fazer, colocado numa saia justa dessas? 

A maioria das pessoas já se acostumou com esse hino cuja música de 1890 evoca bandas marciais tocando nos coretos de cidades do interior; e a letra, rebuscada e ufanista, foi incluída em 1909, trazendo à lembrança aqueles baús antigos que só fechavam quando alguém sentava em cima. 
O uvirandu traz à lembrança bandas
tocando nos coretos de cidades do interior

Escolhendo-se música e letra em concursos públicos e depois juntando ambas à base da forçação de barra nunca se chegará a uma Marselhesa...

Infelizmente, desperdiçou-se tempo discutindo se era um crime de lesa-pátria trocar todos por todes, quando se poderia, por exemplo, colocar em questão se não seria melhor trocar o uvirandu pelo hino libertário composto no momento dos acontecimentos por D. Pedro I, infinitamente melhor.

Quanto à linguagem neutra, nada tenho a acrescentar ao que escrevi em novembro de 2010, no artigo O Waterloo do patrulhamento cricri, tomando como ponto de partida duas das Teses sobre Feuerbach (1845), de Karl Marx: 
"A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, de que seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. 
Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade. 
A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como praxis revolucionária". (3ª tese) 
"Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; chegou a hora de transformá-lo". (11ª tese)
Não basta mudarmos a forma como aludimos
às coisas do mundo. Temos é de mudar o mundo.
Ou seja, os educadores [ou, atualmente, também os influenciadores] que se arrogam o direito de decidir o que crianças (ou a sociedade como um todo) podem ou não ler, e com que ressalvas lhes devem ser apresentadas tais leituras, têm, eles próprios, de ser educados.

As mudanças das circunstâncias e da atividade humana só se dão por meio da prática revolucionária, não de uma educação mudada (ou expurgada, censurada, castrada, mutilada, maquilada, engessada, etc.).

Pois não basta a adoção de outras palavras para eliminar-se a carga de preconceitos com que as pessoas as impregnaram, nem fazer triagem de obras artísticas para extirparem-se os comportamentos condenáveis nela retratados.

Somente livrando a humanidade do pesadelo capitalista conseguiremos dar um fim a todas as formas de discriminação, pois uma das molas-mestras da sociedade atual é exatamente a busca da diferenciação, do privilégio, do status, da superioridade.

Enquanto os seres humanos forem compelidos a lutarem com todas as suas forças para se colocarem acima de outros seres humanos, será ilusório pretendermos tangê-los ao respeito mútuo por meio dessas ninharias cosméticas.

É desprezando os iguais que eles adquirem forças para a luta insana que travam, pisando até no pescoço da mãe para alçarem-se a outro patamar da hierarquia social.
Enquanto nos iludirmos com pequenos retoques na
fachada do edifício capitalista perderemos tempo

Então, a verdadeira tarefa continua sendo a transformação do mundo, para que não haja mais hierarquia e sim a priorização do bem comum, com todos contribuindo no limite de suas possibilidades para que sejam atendidas as necessidades de todos.

Enquanto nos iludirmos com esses pequenos retoques no edifício capitalista continuaremos perdendo tempo, pois mesmo que suas fundações estejam podres, além de qualquer possibilidade de recuperação, ele continuará em pé (por Celso Lungaretti)

3 comentários:

Henrique Nascimento disse...

Essas pautas identitárias dos ditos "esquerdistas" de botecos da Vila Madalena e do Leblon são um saco. São esses aí os mesmos que defendem o stalinismo e seus congêneres.

Excelente artigo !

Neves disse...

E / OU
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/feuerbach.pdf

Anônimo disse...

Heteronomia = perder a autonomia para o "hetero" (aka "outro").
***
SF
*

Related Posts with Thumbnails