Ele passou por mim, mudo e entristecido
Eu quis gritar seu nome, não pude
Ele olhou pra parede, disse coisas lindas
Disse um poema pr'um poste, me veio lágrimas
...O que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
(Tributo A Um Rei Esquecido, Benito Di Paula)
Geraldo Vandré, o maior expoente da resistência musical à ditadura dos generais, completou 89 anos na última 5ª feira (10). De forma melancólica, praticamente esquecido.
Como este blog publicou dezenas de posts sobre os vários momentos da trajetória do Vandré e 24 deles podem ser acessados clicando-se nos links reunidos no rodapé, vou apenas relembrar algo crucial para não cometermos uma enorme injustiça ao avaliarmos sua transformação de cantador não por dinheiro, por justo anseio geral em apologista da Força Aérea Brasileira.
Pois, embora haja sido muito decepcionante, para os que o admiravam, a transformação pela qual ele passou ao voltar para o Brasil em 1973, continuam existindo muitas dúvidas sobre se ela não teria resultado de uma terrível lavagem cerebral.
Sabe-se que ele atravessou maus momentos antes de deixar um País já submetido ao AI-5, mas sua transformação de rei em trapo se deu adiante, na volta para o Brasil, quando a ditadura dele se apossou em 14/07/1973 e só o liberou em 11/09/1973, anunciando então sua chegada como se tivesse acabado de desembarcar no Galeão.
Na verdade, Vandré foi mas é internado numa clínica psiquiátrica e, em depoimento que li na internet, uma companheira que também estava lá relatou que ele se encontrava sob vigilância de agentes da ditadura, impedido de falar com os outros pacientes.
Há também referências a uma internação em 1974, numa clínica do bairro de Botafogo (RJ), depois de uma crise de nervos durante a qual teria ameaçado esfaquear a irmã.
Mas é a do ano anterior que realmente importa. Pode-se dizer que se constituiu num divisor de águas. Vandré era um antes e se tornou outro depois.
Outras peças do quebra-cabeças: em 1980, quando a Caminhando foi enfim liberada pela censura e gravada pela Simone, conversamos uma tarde inteira em seu apartamento da rua Martins Fontes (SP).
Eu pretendia entrevistá-lo para várias revistas de música, mas ele não aceitou. Contudo, ficamos papeando em off e ele fez uma confissão significativa.
Disse que a Caminhando podia voltar ao mercado com outra intérprete, mas ele se colocaria em perigo caso não permanecesse à margem desse processo. Como era uma fase de atentados ultradireitistas contra a abertura do ditador Geisel, percebi que era a eles que Vandré estava aludindo. E que ele estava premeditadamente aparentando confusão mental como forma de autopreservação.
"...eu voltei [do exílio] doente e meio perdido em meu país, quando justamente os militares me acolheram (!), me deram tratamento médico (!!), e me alojaram (!!!)".
"... havia escrito a canção ["Fabiana"] porque sempre fui um apaixonado por aviões. Agora, a minha relação com as Forças Armadas hoje, é de muito respeito mútuo (!). Eles me tratam com dedicação (!!) e sabem das minhas questões existenciais (!!!)".
Ou seja, parece também que utilizaram contra ele o velho teatrinho do policial bonzinho x policial malvado. A alguns ele temia, a outros via como protetores.
Vale citar o Timothy Leary, aquele mesmo dos experimentos com o LSD, que foi também uma das mais maiores autoridades científicas no estudo das lavagens cerebrais:
"Como procedimentos elas são basicamente simples, consistindo na troca de alguns circuitos robóticos por outros. Assim que a vítima passa a encarar o reprogramador como a criança encara seus pais - fornecedores de segurança vital e de apoio para o ego - qualquer nova ideologia pode ser inculcada no cérebro.
Durante o estágio de vulnerabilidade, qualquer pessoa pode ser convertida a qualquer sistema de valores. Facilmente podemos ser induzidos a entoar 'Hare Krishna, Hare Krishna' como 'Jesus morreu por nós', ou a bradar 'abaixo o Vaticano', aceitando plenamente as ideologias que estão por trás desses temas".
Fragilizado por tudo que sofrera, incluindo problemas com drogas, Vandré pode muito bem ter, naqueles suspeitíssimos 58 dias, sido induzido a bradar viva a FAB, o que equivalia, como percebeu o Benito Di Paula, a estar louvando a morte.
Concluindo: enquanto não soubermos no que realmente consistiu o tal tratamento médico proporcionado pelos militares quando acolheram e alojaram o Vandré, não poderemos, em sã consciência, descartar a hipótese de lavagem cerebral. De minha parte, sempre nele verei um companheiro que foi assassinado espiritualmente pelos fascistas, assim como Victor Jara o foi fisicamente.
Desprezo só merece quem não ousou lutar quando, mais do que nunca, a luta era necessária. (por Celso Lungaretti)
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5 comentários:
Para uma Antropologia do novo fascismo. Artigo de Franco Berardi
https://www.ihu.unisinos.br/642495-para-uma-antropologia-do-novo-fascismo-artigo-de-franco-berardi
La civilización del séptimo mandamiento o el suicidio (triunfal) del capitalismo
https://cronicaglobal.elespanol.com/letraglobal/ideas/20240906/la-civilizacion-del-mandamiento-suicidio-triunfal-capitalismo/883661627_0.html
A barbárie do moinho satânico do capitalismo. Destaques da semana
https://www.ihu.unisinos.br/643640-a-barbarie-do-moinho-satanico-do-capitalismo-destaques-da-semana
"Amazônia é esfolada viva", diz jornal francês sobre aumento das queimadas
https://www.ihu.unisinos.br/643601-amazonia-e-esfolada-viva-diz-jornal-frances-sobre-aumento-das-queimadas
Olá, CL
Em relação às datas da volta do exílio que você menciona, há uma divergência nessa matéria do uol :
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/07/17/o-retorno-misterioso-de-geraldo-vandre-ao-brasil-ha-50-anos.htm
Valeu o registro, Túlio. Como nunca pretendi ser um scholar, não conservei as fontes nas quais me baseei para escrever sobre esse assunto no século passado. E o post que lancei neste mês se baseia, em parte, num post de décadas atrás.
O que não significa que o meu post esteja errado e o livro do Nuzzi, certo. Quando o li, percebi que ele se ateve muito ao que o Vandré "transformado" dizia. E muita coisa não batia com meu conhecimento muito maior de como agia a repressão.
Enfim, tenha o Vandré permanecido sequestrado e incomunicável por quase 2 meses ou só por 1 mês, o fundamental é que esteve indefeso nas garras do inimigo por tal período e há enorme chance de haver sofrido então a lavagem cerebral que eu e muitos companheiros consideramos a única explicação plausível para sua diametral mudança de postura.
Afora o Vandré haver realmente me dito que não quis relançar a "Caminhando" em 1980, preferindo que a música voltasse a circular na gravação da Simone, porque temia sofrer algum atentado fascista caso ele voltasse à tona juntamente com a música.
Afora sua declaração taxativa de que não voltaria a cantar no Brasil enquanto aqui não houvesse um estado de Direito pleno. E ele foi mesmo apresentar-se em 1982 no Paraguai, pertinho da fronteira com o Brasil. Será que havia algum paraguaio assistindo ou só brasileiros?
Ou seja, ele semeava confusão, embaralhava as cartas, para que ninguém tivesse certeza quanto ao que realmente lhe acontecera.
Se o sequestro houver mesmo durado apenas 1 mês, pelo menos terá preenchido exatamente o período de incomunicabilidade dos presos sob a Lei de Segurança Nacional que a ditadura outorgou a si própria no AI-5.
Minha história teria sido bem diferente caso a repressão respeitasse as regras que ela própria instituía.
A minha incomunicabilidade durou 75 dias já passara de 2 meses quando me estouraram o tímpano. Se houvesse durado apenas até 16 de maio. provavelmente não ocorreriam as evoluções que me tornaram um bode expiatório de vaciladas alheias.
Nem eu estaria há 54 anos sofrendo com a audição do ouvido direito muito prejudicada, além das crises de labirintite que me prejudicaram a vida e a carreira.
Caro, CL
Certamente, nossa memória costuma nos trair, ainda mais depois de décadas.
Sabendo disso, levantei a questão apenas para esclarecimentos, por se tratar de fatos importantes de nossa triste história.
Acredito que seu relatos dos anos de chumbo são da maior importância para o público em geral e especialmente aos leitores do blog.
Saudações .
Ninguém é perfeito, Túlio, mas quando eu escrevi que o Vandré havia passado quase dois meses sequestrado pela repressão ao voltar para o Brasil, baseei-me em informação alheia, pois não estava morando no RJ nem soube nada disso quando estava acontecendo. Confiei em algum relato encontrado na internet e, como se tratava de um artigo jornalístico e não de um livro acadêmico, não mencionei as fontes utilizadas.
Agora em setembro de 2024, fazendo um novo post mas baseado naquele meu artigo do século passado, citei os quase 2 meses de sequestro por parte da repressão. Então, não foi a memória que me traiu, mas sim uma informação que eu não possuía ao escrever sobre esse assunto no passado.
Um abração!
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