quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O MAIS DRAMÁTICO DE TODOS OS FESTIVAIS DE MPB FAZ 55 ANOS [BÔNUS: VEJA VANDRÉ CANTANDO "CAMINHANDO" EM 1970]

O último grande festival de MPB da década de 1960 completará 55 anos nesta 6a feira, 29. 

Trata-se do 3º Festival Internacional da Canção da Rede Globo, o mais dramático de todos os eventos deste tipo realizados no período 1965/68, antes que a censura ditatorial e o terrorismo de estado que se abatera sobre o país os descaracterizasse a tal ponto que foram se tornando irrelevantes e desaparecendo aos poucos.

Neste festival Geraldo Vandré se consagrou como autor da canção-símbolo da resistência brasileira ao arbítrio fardado... e pagaria muito caro por isto. 

Até mesmo os registros televisivos de sua interpretação de "Caminhando" na eliminatória paulista e na final no Maracanãzinho desapareceram como que por encanto do arquivo da Globo, daí todos os vídeos hoje disponíveis no YouTube serem gravações de áudio complementadas por montagens de fotos ou de imagens genéricas da bestialidade do regime.
Caetano desabafou no Tuca

Mas, os tentáculos da ditadura não eram tão longos a ponto de ela conseguir apreender uma gravação de Vandré, exilado, interpretando alguns de seus sucessos em 1970 na TV alemã. Inclusive "Caminhando". 

Então, desta vez meu post da efeméride vem ilustrado com a janelinha que eu gostaria de ter incluído em todos os que venho fazendo desde que em 2007 me tornei blogueiro: o Vandré visível e não apenas audível, interpretando a sua mais sofrida canção.

Com um detalhe fundamental: isto no tempo em que ele ainda era Vandré, ou seja, antes do sequestro que sofreria ao voltar para o Brasil em 1973, quando os militares estavam à sua espera no aeroporto para, retirando-o por uma porta de saída alternativa, interná-lo por 58 dias numa clínica carioca, sem que até hoje se saiba a que tipo de tratamento foi submetido.

"Ele foi um rei, e brincou com a sorte. Hoje ele é nada, e retrata a morte... O que foi que fizeram com ele? Não sei. Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei", cantou Benito Di Paula..
O GOLPE DENTRO DO GOLPE JÁ ESTAVA A CAMINHO – O 3º FIC ocorreu em meio a passeatas, mortes, ações armadas da esquerda, atentados dos paramilitares de direita, atuação impune do CCC (que acabara de espancar o elenco da peça Roda Viva, em SP), TFP, TFM e outras siglas medonhas.

A temperatura começou a ferver na eliminatória paulista, quando Caetano Veloso recebeu monumental vaia ao defender, com os Mutantes, sua "É proibido proibir", baseada numa palavra-de-ordem das recentes barricadas parisienses.
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Zé Celso, Ítala Nandi
e Chico Buarque na célebre passeata dos 100 mil.
Gil, com barba cerrada e camisolão africano, chocou tanto a plateia pela aparência quanto pelos versos incendiários de "Questão de ordem".

Ao serem anunciadas as músicas classificadas para a grande final no RJ, Caetano foi  proibido, pelas vaias, de  apresentar sua "É proibido proibir". Já irritado por "Questão de Ordem" ter ficado de fora, explodiu, pronunciando o discurso famoso:
"Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) São a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! (...) Vocês são iguais sabe a quem? (...) Àqueles que foram ao Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles!".
A esquerda compareceu ao Maracanãzinho com o que tinha de melhor: 
— "Caminhando", profissão-de-fé de um Vandré amargurado por várias desilusões recentes e que extraiu do sofrimento seus versos mais certeiros e contundentes; 
— "América, América", altaneiro tributo de César Roldão Vieira ao comandante Che Guevara; e 
— "Canção do Amor Armado", outra culminância da fase de ousadias experimentais de Sérgio Ricardo.

Pressões das autoridades ditatoriais sobre os organizadores, e destes sobre o júri, impediram a vitória da grande favorita do público: "Caminhando". Graças a um expediente típico de araponga, o radialista Walter Silva esqueceu um gravador ligado no recinto da reunião do júri, revelando então ao seu público que os jurados haviam sido orientados a não premiar músicas que faziam propaganda da guerrilha.
Só o júri gostou dos piados da sabiá: Cynara e Cybele
vaiadas, Tom Jobim e Chico Buarque querendo sumir...
 
  

A reapresentação de "Caminhando", já anunciado seu 2º lugar, foi comovente, com os moradores de Copacabana saindo às janelas para cantá-la junto com a TV (colocada no volume máximo!). 

Tal clímax emocional tinha a ver tanto com a injustiça musical quanto com a revolta despertada pelas indignidades a que os efetivos da repressão haviam recém-submetido, no RJ, os participantes de uma  passeata menor, urinando nos jovens rendidos e bolinando as moças, tão confiantes na sua impunidade que se permitiam praticar tais atos em público.

A maior vaia da história dos festivais foi então direcionada a "Sabiá", impedindo que as atônitas Cynara e Cybele bisassem a vencedora. Para compensar, a Globo deu um jeitinho para que esta canção anódina vencesse também a fase internacional do 3º FIC...

Juízos estéticos à parte, a composição de Chico Buarque e Tom Jobim estava mesmo em descompasso com o Brasil convulsionado daqueles dias, daí ambos terem levado tal inesperado sacode

Chico entendeu o recado e logo faria, na canção "Agora falando sério", uma autocrítica da pegada evasiva que adotara nas composições com as quais participara dos vários festivais ao longo de 1968, embora não tivesse deixado de marcar posição contra a ditadura, ao participar da célebre passeata dos 100 mil.
O Globo justificando a mudança
de jurados do festival da TV Globo
Por último: antes que o AI-5 fosse assinado, mas já com a censura funcionando a todo vapor, ainda houve o 4º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em novembro, esvaziado de alguns dos principais compositores (Caetano Veloso e Gilberto Gil, p. ex., desistiram de interpretar sua parceria "Bem-Vinda", delegando a tarefa a Gal Costa, que assim alcançou o estrelato). e obviamente sem clima. 

Com o AI-5 em vigência tudo ficou pior ainda. A pá de cal já deveria ter sido aplicada em 1971, no 6º FIC, quando os autores importantes remanescentes combinaram de, aproveitando a transmissão ao vivo para o exterior, denunciarem de improviso os crimes da ditadura. Só que as autoridades ficaram sabendo, inviabilizaram qualquer tentativa de protesto e eles, em bloco, retiraram suas composições. 

Teimosamente a Globo ainda promoveu o 7º FIC no ano seguinte, quando teve de destituir o júri para premiar a sua favorita, "Fio Maravilha", do Jorge Benjor. 

Aí, face a tamanha avacalhação, entregou definitivamente os pontos. (por Celso Lungaretti)

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