Bem que eles tentaram fazer-nos crer que este senhor era o Geraldo Vandré... |
O pior foi que tal cidadão, próximo de completar 88 anos de idade, passou o tempo todo respondendo de forma lacônica e evasiva as perguntas que lhe faziam, como se quisesse dissociar-se do mito com o qual é erroneamente confundido.
Conseguiu. A sensação que tive foi a do triste fim de um dos maiores expoentes da música brasileira em todos os tempos. Vandré está morto. E nem os esforços dos entrevistadores, empenhados em dele obterem um sopro de vida em benefício do programa, conseguiram reacender uma chama que virou cinzas.
O mais doloroso eram os vídeos incluídos de performances antigas do Vandré, às vezes com a tela dividida entre o intérprete que personificou a repulsa dos jovens idealistas à pior ditadura que o Brasil já conheceu e o visível constrangimento de um homem que, ao contrário do título alternativo da música Ventania (clique p/ acessar), não conseguiu continuar andando após ter perdido seu cavalo.
Na verdade, o que ele perdeu foi a alma, depois de ser sequestrado por militares tão logo desembarcou em 1973 num aeroporto brasileiro, ao retornar de seu exílio por Chile, Uruguai e vários países europeus.
Permaneceu internado durante 58 dias numa clínica carioca e de lá saiu mudado, ora fazendo-se de louco, ora desconversando sobre o que realmente sofrera nas mãos daqueles a quem outrora fustigara com versos como estes, da canção Terra Plana (1968):
"...se um dia eu lhe enfrentar,/ não se assuste, capitão,/ só atiro pra matar e nunca maltrato, não./ Na frente da minha mira/ não há dor, nem solidão.
"E não faço por castigo,/ que a Deus cabe castigar/ e se não castiga ele,/ não quero eu seu lugar./ Apenas atiro certo/ na vida que é dirigida/ pra minha vida tirar..."
Benito Di Paulo, em seu Tributo a um Rei Esquecido (1974), expressou seu espanto com o estado ao qual ficou reduzido aquele que "foi um rei e brincou com a sorte,/ hoje ele é nada e retrata a morte".
E, como tantos e tantos que o haviam conhecido quando ainda era Vandré, perguntou: "O que foi que fizeram com ele? Não sei./ Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei".
Mas, não foi com um trapo que conversei longamente numa tarde de 1980, quando a censura liberara Caminhando e o hino revolucionário de 1968 (não apenas uma exaltação das passeatas, pois termina apontando para a guerrilha nos versos "somos todos soldados, armados ou não" e "a certeza na frente, a História na mão.../ aprendendo e ensinando uma nova lição") voltava a obter sucesso na voz de Simone.
Naquela ocasião ele não fez declarações de amor aos algozes, mas sim disse que não se apresentaria nos palcos brasileiros enquanto não fosse restabelecida a ordem institucional e admitiu temer retaliações caso tentasse voltar à tona juntamente com a canção que, acaba agora de dizer, determinou o fim de sua carreira.
Suas palavras foram então bem claras: a música emblemática poderia ter um novo apogeu, mas se ele embarcasse nessa onda, talvez virasse um alvo na mira de personagens sinistros.
Ou seja, daqueles aloprados que incendiavam bancas de jornais e enviavam cartas-bomba a instituições como a OAB e a ABI para tentarem abortar a abertura lenta, gradual e segura do ditador Ernesto Geisel, a qual incluía a extinção dos DOI-Codi que haviam brotado como cogumelos na fase mais brutal do terrorismo de Estado.
Suas ostensivas bizarrices naquele momento não passariam, portanto, de um artifício para, fingindo-se de morto, driblar a morte.
Então, mantenho a minha análise segundo a qual "o que fizeram com ele" naqueles 58 dias que ficou à mercê dos órgãos de segurança não foi propriamente uma lavagem cerebral, até porque em verdade não funcionou, tendo, contudo, o intimidado de tal forma que ele desperdiçou em 1980 sua última grande chance de voltar a ser Vandré.
O resto foi anticlimax, até por não haver passado pela prova de fogo o personagem que ele projetou em várias de suas canções (vale lembrar também Bonita, de 1968, quando ele se despede de uma namorada por estar partindo para a guerrilha e acreditar que não voltará, afora, claro, o tributo ao Che, que está na altura de 16'21" do vídeo atrás lincado).
Foi torturado? É difícil chegarmos a uma conclusão. Mas, afinal, o que ele queria subentender com a canção gravada em 1970 em seu exílio europeu, na qual ergue, até no título, uma Bandeira Branca? Os versos "Se for preciso, morena,/ na frente ainda dá pra enfrentar", p. ex., aludem à situação em que vários torturadores agridem um prisioneiro por todos os lados ou é somente a primeira impressão que ocorre a quem passou por tal espancamento covarde?
Após esta matéria de capa Vandré passou a ser visto como louco |
O certo é que, como ele próprio antevia, Vandré perdeu seu cavalo e não sabia mais para que lado andar. A auto-estima de nordestino pode tê-lo impedido de admitir francamente que não resistiu de forma altaneira ao inimigo, como acreditava que conseguiria, daí haver enveredado por um tal emaranhado de contradições que talvez nem ele próprio soubesse mais como fazer para desatar os nós.
Ditaduras podem executar artistas como Garcia Lorca e Victor Jara, ou matá-los espiritualmente como foi feito com Vandré.
Fiquei indignado ao ver o morto-vivo exposto pela TV Bandeirantes, ainda que não tenha sido esta a intenção dos realizadores do melancólico Canal Livre do último domingo, 23.
Foi como se o sistema tripudiasse sobre aquele que destruiu de forma hedionda, transformando-o, como bem disse o Benito Di Paula, num traste. (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor, blogueiro e ex-preso político)
Também mencionada no Canal Livre de 23/07/2023, eis a peça de cunho
religioso-libertário que Vandré compôs em 1968 para a celebração da
Semana Santa na igreja paulistana de São Domingos das Perdizes.
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