quarta-feira, 1 de maio de 2024

ESTE TRIBUTO A AYRTON SENNA É, ATÉ HOJE, MEU ÚNICO ARTIGO SOBRE AUTOMOBILISMO

Artigo que escrevi para o Jornal da Tarde (SP) após a tragédia
de Ímola, sobre um esporte que não me empolgava, mas conhecia
um pouco devido à devoção dos meus pais pelo Senna. Foi minha
reação 
à cobertura piegas e choramingas da imprensa brasileira.
 
RÉQUIEM PARA UM GLADIADOR
São indignas de Senna as lágrimas de crocodilo que jorram aos borbotões da mídia, reduzindo uma morte épica à banalidade das telenovelas. 

Não foi vítima de um destino traiçoeiro nem assassinado pela incúria dos dirigentes do automobilismo mundial. 

O muro que se agigantou à sua frente o perseguia desde os primórdios da carreira: está nos pesadelos de todos os pilotos. Não existe segurança a 300 quilômetros por hora.

O fascínio da Fórmula 1 tem tudo a ver com o instinto de morte, que Freud detectou como sendo um dos componentes essenciais de nossa psique e de nossa cultura. O herói do volante desafia o perigo a cada curva e o público junto com ele, numa identificação tão mágica quanto cômoda.

São os gladiadores do século 20, correndo riscos em nosso lugar, para que tenhamos uma boa catarse (aliás, até seus trajes e os autódromos –principalmente os circulares da Fórmula Indy– lembram o visual das arenas romanas).

Mas, na era da propaganda, tudo isso deve ficar implícito. Galvões e Lucianos se limitam a dissecar pequenos detalhes técnicos que reduziriam ou aumentariam as probabilidades de sobrevivência dos pilotos. Já os próprios, em rasgos de sinceridade, admitem que a linha separando acidentes superficiais dos fatais é tão tênue quanto um fio de cabelo.

Muitos poderiam ter morrido nos oito anos em que a F-1 não registrou óbitos, mas aqueles ínfimos milímetros que decidem a sina do acidentado foram favoráveis. Em Ímola, os deuses não estavam complacentes e tudo saiu da pior maneira possível.

Como Christian Fittipaldi ressaltou, descartando uma maior periculosidade em função da retirada do controle de tração e suspensão ativa: "Ano passado tinha tudo que vimos aqui mas, graças a Deus, ninguém se machucou. (...) O Berger, no GP de Portugal da última temporada, não se matou por milagre. (...) É relativo dizer que hoje o risco é maior".

Eles, os pilotos, sabem. Mesmo assim, entram naquelas estranhas máquinas e, em posições cujo desconforto beira a tortura, percorrem o fio da navalha em velocidades estonteantes, conscientes de que a mínima falha –sua, dos outros ou do equipamento– poderá ser fatal.

Pior: sua condição de ídolos depende não apenas de receberem a bandeirada na frente, mas de guiarem com arrojo e agressividade. Os fãs cobram esta atitude temerária. Ai dos Prosts que pensam antes na autopreservação, colocando a vitória em segundo plano! São tidos como covardes.

Senna era um típico gladiador. Assumia todos os riscos e jamais refugava nas ultrapassagens difíceis, nos duelos insensatos. Os mesmos que denunciam a insegurança de Ímola eram os que aclamavam Senna quando ele realizava brilhantes –
e perigosíssimas– corridas em pista molhada. O muro esteve sempre muito perto dele, até que o alcançou.

Tímido, pouco à vontade no papel de celebridade, jamais aparentando satisfação maior com as coisas simples da vida, Senna atingia a plenitude na arena de suas conquistas e no pódio triunfal. É difícil imaginá-lo aposentado, remoendo o passado e amaldiçoando o presente.

Parafraseando os roqueiros Pete Townshend e Neil Young, talvez no caso de Senna fosse mesmo preferível morrer antes de envelhecer, consumir-se em chamas do que definhar aos poucos. Foi até o fim no rumo que escolheu: gladiador altaneiro, merece respeito e não lamúrias. (por Celso Lungaretti)
Entrevista de 102 min. com Senna no programa Roda Viva, da TV Cultura (SP)

terça-feira, 30 de abril de 2024

CINEMA, MULHERES E OPRESSÃO NO IRÃ

Ao tomar conhecimento da escolha de um novo filme do cineasta iraniano Mohammad Rasoulof para a mostra competitiva do 77º Festival de Cinema de Cannes (A semente da figa sagrada, 2024), eu me lembrei imediatamente do Festival de Berlim de 2020, do lugar onde estava sentado com minha esposa, do cinema repleto e da projeção de Não há mal algum, desse mesmo diretor. 

E me recordei também da mochila que alguém colocou ao meu lado no corredor –eu estava na ponta de uma fileira de lugares–, me deixando tenso, com receio de a mochila explodir. O filme ganhou o Urso de Ouro!

Rasoulof não pôde estar presente à projeção de sua obra e nem mesmo ir a Berlim para receber o prêmio máximo do festival. Como recompensa por tal conquista, Mohammad foi preso alguns dias depois e a imprensa internacional alertou para o risco de Rasoulof ser contaminado com o vírus da covid na prisão.

Naquele festival havia um filme brasileiro (Era Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra), um dos últimos a participar de competições cinematográficas internacionais, em consequência da censura ou cortes de verba para a Ancine e para produtores. 
 
Nos corredores, me encontrava com a produtora Sara Silveira, inquieta com o futuro do cinema brasileiro sob o Bozo, decidido a acabar com as subvenções para a cultura e forçar a privatização desse setor, colocado sob o controle de evangélicos dispostos a censurar toda manifestação cultural fora das quatro linhas da Bíblia. 

O cinema brasileiro há de recuperar-se dos anos obscurantistas. E o Irã, deixará Mohammad Rasoulof ir a Cannes mostrar a semente sagrada?
Protestos contra a morte na prisão de Mahsa Amini,
detida em 2022 por cobrir a cabeça de forma incorreta
 
Nos meus primeiros anos de exílio em Paris, quando frequentava a rue Saint Guillaume, onde fica a Sciences Po, ia sempre encontrar amigos na livraria Maspero, almoçar num dos restaurantes universitários e discutir política nos cafés do Quartier Latin, 

Todos nós éramos contra o xá Rheza Pahlevi. Longe estávamos de imaginar que a entrega do Irã ao aiatolá Khomeini iria levar à teocracia islâmica, onde se perseguem cineastas e se matam mulheres por não se vestirem e nem cobrirem a cabeça como manda o profeta.

Vi uma reportagem da BBC sobre como era a vida das mulheres antes da revolução islâmica; o uso do véu (ou chador) sido abolido no Irã em 1936. Alguém poderá arguir: e daí?  Afinal, a revolta contra o xá era contra uma ditadura e contra o imperialismo estadunidense.

É verdade, mas naquela época ninguém pensou nas consequências diretas para as mulheres da chegada do aiatolá ao poder. E nem se imaginava ser uma revolução masculina. Essas consequências foram trágicas e não eram apenas questões de roupas, vestidos compridos cobrindo braços e pernas, e o chador cobrindo os cabelos e a cabeça. 

Significou o retorno a uma situação de submissão e dependência total da mulher aos homens e ao sistema religioso. A restrição às mulheres do acesso ao mundo cultural e profissional. Uma submissão de longe mais grave que a exigida pelos neopentecostalistas estadunidenses e brasileiros.  
Charge do heroico Charlie Hebdo contra o obscurantismo

Um site francês,
 Le Grand Continent, publicou, logo após o assassinato da jovem iraniana Mahsa Jina Amini por ter o véu mal colocado na cabeça, um depoimento-reportagem da escritora Sorour Kasmai sobre o tema Ser Mulher no Irã, o prefácio do seu livro Mulher, Sonho, Liberdade, reunindo 12 histórias inéditas de mulheres no Irã. 

Sem esquecermos de Narges Mohammadi, prêmio Nobel da Paz, apodrecendo na prisão iraniana de Evin, por seus combates contra a opressão das mulheres e pela promoção dos direitos humanos para todos.

Cineastas, mulheres... Outro dia me surpreendi ao ver num debate dos canais do Youtube três universitárias brasileiras falando do Irã, mas se esquecendo de que era uma teocracia onde as mulheres perderam todos seus direitos. Tive vontade de deixar uma mensagem, comecei a escrever, mas apaguei... (por Rui Martins)

domingo, 28 de abril de 2024

O FIASCO DA ESQUERDA INSTITUCIONAL NO CONTEXTO DE GUERRA E DEPRESSÃO

 


N
ão me apraz constatar que a esquerda de há muito se conformou com um infrutífero papel de diluição do seu conteúdo revolucionário, anticapitalista, para se adaptar à forma de relação social própria ao sistema produtor de mercadorias, na vã tentativa de humanizá-lo. 

O mais grave é que isso ocorre no exato momento da sua desintegração total, evidenciada pelo pipocar das guerras e movimentos migratórios sem precedentes na história mundial, em face da inviabilidade estrutural dos conceitos de forma e conteúdo desse mesmo sistema. 

Assim, essa esquerda acaba por concordar implicitamente com a tese equivocada de que o capitalismo pode se adaptar às mutações sociais próprias ao movimento dialético da história tornando-se eterno.  

Dessa forma, no Brasil a esquerda institucional oPTou pela socialdemocracia e está definhando juntamente com a sua escolha de administração e participação política: a ordem econômica-institucional capitalista.  

Essa é a razão básica do crescimento da direita, que sem oposição consistente e duradoura, tenta fazer vingar os seus postulados retrógrados que encontram eco numa sociedade desesperada, desinformada e inconsciente de si mesma.  

Por aqui, há quase onze anos, em 2013, na cidade de São Paulo, Meca do capitalismo da América do sul, houve uma explosão de insatisfação popular por conta de um gatilho de tal estado de ânimo: um mero aumento de passagens. Um gatilho que gerou turbulências que perduram até hoje.   

Diante da ausência de comando de organismos sindicais e partidos da esquerda, que preferiram condenar o movimento, como ficou clara na posição da presidenta Dilma Rousseff, a direita “deitou e rolou” com seu discurso neofascista, recebendo apoio de uma classe média que, embandeirada de verde-amarelo, estimulou o impeachment que veio já em 31 de agosto de 2016, tendo o ex-petista Hélio Bicudo como signatário e sendo aceito pelo abominável presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e referendado pelo legislativo. 

Tudo ocorreu num prazo de pouco mais de três anos e foi o estopim da ascensão ao poder político federal de um deputado federal do baixo clero, de baixíssima capacitação moral e competência para o exercício do cargo: Bolsonaro, o ignaro.   

Resultado: fomos os campeões em porcentagem de mortes por uma epidemia sanitária - cerca de 10% do total das mortes calculadas em 7 milhões, quando temos apenas 3% da população mundial-, em face da demora do uso de vacinas e da incitação governamental à normalização e manutenção das atividades sociais - comércio, produção de mercadorias, serviços, escolas, etc. -, para ficarmos apenas nesse dado irrefutável de comportamento irresponsável e genocida.  

A ordem capitalista, na sua percepção do desastre sistêmico iminente que paira sobre sua cabeça, encontrou sobradas razões para anular um processo judicial parcial e midiático - não esqueçamos que a mesma rede Globo que hoje condena a lava jato, é aquela que tinha o privilégio de transmitir ao vivo e à cores as espetaculares prisões e arbitrariedades -, e trouxe ao processo eleitoral aquele que poderia vencer o tresloucado presidente candidato à reeleição, que deixara de servir aos interesses dos donos do PIB por sua idiossincrasia.  

Tal qual Tancredo Neves no passado, que sempre serviu de válvula de escape à direita para os momentos de tensões políticas e de ameaças à ordem institucional capitalista, trouxeram de volta o conhecido e moderno conciliador socialdemocrata que, para muitos trabalhadores desempregados, mal-empregados e pequenos comerciantes representava a lembrança de tempos mais venturosos: Luiz Inácio Lula da Silva. 

O personagem perfeito para cumprir o papel de administrador da crise de depressão capitalista mundial sob o manto da esmaecida estrela vermelha do socialismo mundial cooptado.  

Ufa!! Retiramos o bode da sala!! 

Mas, passado ano e meio do alívio, eis que temos que encarar a realidade. Há dez anos temos um PIB pífio e que se anuncia como ainda menor para este ano do que foi no ano passado, isso após 10 anos de paralisia econômica.   

Mas não devemos acreditar no senso de justiça das três principais instituições da democracia burguesa - parlamento, judiciário e força militar - a serviço dos donos do PIB daqui e do mundo, que agem de acordo com a direção dos ventos tal qual as birutas dos aeroportos.  

Temos problemas estruturais que já não encontram paliativos nas conhecidas medidas políticas e econômicas tradicionais que se expressam: 

- nos renitentes altos níveis de desemprego;  

- nos baixos salários médios que fazem os sindicatos se silenciarem por medo de demissões em massa e se enfraquecem por não apresentares soluções consistentes para seus associados;  

- na ameaça de retomada da inflação, que representa confisco de salários já defasados;  

- no aumento da criminalidade e poderio do crime organizado;  

- na contradição do discurso de preservação ambiental em contraponto à ênfase na produção e distribuição de petróleo;   

- na necessidade governamental de obediência às exigências ditatoriais de mercado que se contrapõem às justas necessidades do povo, sob pena de êxodo de investimentos; 

- na frustração pela sempre postergada retomada do desenvolvimento econômico num mundo em depressão, que promoveria relativo bem estar social; 

- nas taxas de juros altas e que incidem sobre uma dívida pública crescente e que penaliza o povo brasileiro (cada buchudinho da favela  paga R$ 3.600 de juros ao sistema bancário e rentistas do mundo todo), e que se diferencia dos juros pagos pelos membros do G7, demonstrando quão extorsivo é o sistema bancário mundial;   

- e tantas outras contradições que se explicitam no fato de não se poder (e nem se querer) negar aquilo a que se serve e do que se serve, ou seja, no fato da esquerda pretensamente anticapitalista receber benesses, sob as mais variadas formas, para administrar e assumir a falência sistêmica capitalista. 

Mas, para desespero dos conformistas, há um clima de guerra mundo afora.  

Tal clima de guerra deriva de uma crise estrutural do capitalismo que tenta manter pela força bélica o que já não pode ser contido pelas regras da política diplomática. A insatisfação no interior dos países gera uma ebulição por conta da pretensão de formação de novos blocos pretendentes a se tornarem economicamente e militarmente hegemônicos seguindo a natureza belicosa e competitiva própria ao sistema produtor de mercadorias.    

Enquanto isso, a esquerda perde sua referência revolucionária e se perde numa função estranha ao que é, ou deveria ser, seu ethos original para ocupar um espaço de coadjuvante na administração política do capitalismo decadente.  

Assim, a esquerda institucional abdica do protagonismo na cena mundial que está a merecer uma intervenção propositiva diferente, emancipatória, salvadora, igualando-se ao papel que os atores capitalistas estão a encenar. 

O povo, na sua crença ilusória e simplista da capacidade do poder político governamental de resolver os problemas que se agravam, vê-se diante da repetida frustração da ação governamental em cumprir tal desiderato, e manifesta o seu desencanto a cada ciclo eleitoral, e assim a vida segue com mudanças cosméticas que não alteram a substância do que lhe serve de base.  

Mas o espaço de manobra é cada vez mais reduzido no tempo e no espaço e essa é a razão pela qual o governo Lula perde prestígio, fato demonstrado pelas últimas pesquisas de opinião pública.   

A política, stricto sensu, na verdade é um poder sem soberania de vontade que foi moldado para servir ao capital e, portanto, não pode se voltar contra seu criador sob pena de deixar de ser o que é: uma esfera meramente serviçal de um senhor absolutista e ditatorial. 

À esquerda cabe se reinventar e confrontar essa realidade, por mais dura e difícil que seja, e para merecer a credibilidade duradoura perante a opinião pública.  

Isso somente poderá ser alcançado com a negação do poder político vertical imanente à ordem capitalista, ou seja, se se despir da roupagem com a qual se travestiu e que se constitui como contradição contida na afirmação concomitante daquilo que diz negar na sua ação político-social. (por Dalton Rosado)

 

sábado, 27 de abril de 2024

O BRASIL SE TORNOU UM EVANGELISTÃO?

H
á muita gente preocupada com a insistência das redes sociais de extrema-direita e evangélicas em continuarem reprisando velhas mentiras ou criando novas versões, sem perda de seguidores. 

Tal fidelidade, capaz de gerar meio-milhão de visitas e centenas de milhares de curtidas em algumas horas, foi reforçada com as recentes críticas do proprietário do X, Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes do STF e deu ensejo a mais uma micareta dominical bolsonarista em Copacabana, reunindo o Bozo, o pastor Silas Malafaia e outros espécimes da mesma laia. 

Embora na bufonada de fevereiro na avenida Paulista (SP) o clima tenha sido comedido, com o astro da trupe propondo anistia para todos, a recente intervenção estrangeira de Elon Musk relançou o clima de polarização e deverá trazer de volta os discursos de ódio contra o presidente Lula e o STF.  

Alguns canais de esquerda se perguntam por que o governo de Lula não é mais ativo nas redes sociais para mostrar as realizações positivas de seu governo, a fim de estancar esse constante desgaste provocado por fake news e discursos de ódio.

Ou é simplesmente impossível chegar até os adeptos ultradireitistas (ainda que em grande parte sejam negros, pardos, pobres e mulheres), insensíveis aos alertas de que seu líder é racista, indiferente às medidas contra a pobreza e mesmo contrário à liberdade para as mulheres?
Musk: rato que ruge em nome da liberdade de empulhação

Só alguns começam agora a perceber a existência de uma impermeabilidade impedindo os bolsonaristas de captarem as verdades relativas aos direitos sociais. 

Tal impermeabilidade é criada pela maneira como funcionam as seitas neopentecostais, as quais, como comunidades, apoiam e incentivam atividades capazes de criar proximidade entre as pessoas e são como células ativas, com reuniões todas semanas. 

As pregações, as escolas bíblicas para crianças e jovens são constantes, semanais ou bissemanais, não deixando espaços para outros tipos de preocupações depois do trabalho. Nisto lembram as antigas células do partido comunista com atividades para estudantes, donas de casa e operários. Hoje, não se faz mais isso, porém os evangélicos, além de religião, se tornaram partido político fundamentalista.

O líder petista José Dirceu, em recente entrevista, sustentou que Lula e o PT deveriam ir ao encontro dos evangélicos. Não deixou nada preciso, mas lembrou que a igreja católica entrou em decadência ao reprimir a teologia da libertação, que ia ao encontro do povo, deixando então o caminho aberto para os neopentecostais.

Muitos bolsonaristas esqueceram de que foi Lula quem favoreceu a criação da marcha para Cristo e facilitou os alvarás para as igrejas evangélicas funcionarem em garagens, enquanto a então presidente Dilma compareceu à inauguração do Templo de Salomão do Edir Macedo. 
Dilma botando azeitona na empada do Edir Macedo

A ideia de o Lula ir ao encontro dos evangélicos não é assim tão simples, pois não houve retorno favorável aos esforços petistas do passado. 

Muito ao contrário: empenhados em impedirem a eleição do Lula em 2022, os líderes evangélicos usavam as redes sociais para amedrontar seus fiéis com os espantalhos do advento do comunismo e do fechamento de igrejas caso o candidato petista fosse eleito. Ainda hoje a bancada evangélica amiúde boicota o governo do Lula.

Ressalve-se que, embora a maioria evangélica continue sendo bolsonarista, existe também uma minoria de esquerda, como o deputado federal Henrique Vieira e a ministra verde Marina Silva. Entretanto, os pastores e seguidores evangélicos são majoritariamente fundamentalistas, incluindo muitos golpistas; suas afinidades com a extrema-direita saltam aos olhos. 

Na verdade, quase se poderia falar num desvio evangélico ou numa refundação da teologia evangélica, por influência da igreja Assembleia de Deus e de teólogos fundamentalistas dos EUA cujos seguidores lá apoiam Donald Trump para a presidência. 

Trata-se da Teologia do Domínio, que, num rápido resumo, consiste numa recalibragem da mensagem cristã evangélica misturando-se com preceitos básicos do  Velho TestamentoO cristianismo deixa de ser só mensagem de paz e amor, como se pregava, para juntar conceitos guerreiros do Deus de Abrãao.
As arengas dos pastores do ódio
são corpos estranhos no século 21
 
Quem seguiu pela televisão a última micareta bolsonarista  na avenida Paulista talvez tenha percebido: não se falava nunca em Jesus Cristo, mas sempre em Deus, subentendido o Deus de Israel, donde uma identificação dos evangélicos com os israelenses (embora não sejam cristãos), a ponto de ostentarem e respeitarem a bandeira de Israel.

Nessa linha, os novos evangélicos são combatentes do Bem contra o Mal, ou seja, defendem valores vigentes no século passado, combatendo o aborto, o homossexualismo, o feminismo, etc. 

Nos EUA, onde a colonização foi guerreira e a posse e o uso de armas é comum na população, há o risco de guerra civil, caso Trump seja derrotado ou não possa disputar a eleição presidencial. 

Ao que parece (pelo menos os fatos o demonstram), a teologia belicosa do domínio, já transformada em partido político de extrema-direita e orientada no sentido de garantir a eleição de Bolsonaro, não funcionou com os evangélicos brasileiros, cujo pacifismo inato fez ruírem os planos dos líderes golpistas na intentona fracassada de 08/01/2023.

Resta uma dúvida: por que Deus escolheu como líderes Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no Brasil? Para isto é dada a seguinte explicação: Deus unge ou escolhe pessoas que nem sempre são perfeitas. E logo é citado o caso do rei Davi, herói contra Golias, escolhido por Deus, mesmo tendo antes pecado no caso de Urias e Betsabá, crime e adultério. Os pastores então impingem aos crédulos que Deus escolheu Trump mesmo com todos os seus erros, e Bolsonaro apesar de todas as suas falhas e pecados.

Há alguma lógica ou racionalidade nisso? Não, nenhuma. Entretanto, os evangélicos poderão ultrapassar os 50% da população em 2050 e criar novas leis favorecendo seu credo conservador e fundamentalista. Não será uma exceção: o Irã é uma teocracia islâmica, o governo do Hamas em Gaza é outra e Israel cada vez mais involui para uma teocracia. (por Rui Martins)
I
mportante
 – escrever para o Observatório da Imprensa não é um emprego, não se ganha nada, mas era para mim uma oportunidade de utilizar o conhecimento de uma vida no jornalismo para analisar o que se lê ou vê no mundo da imprensa, até porque o OI é geralmente lido por estudantes de jornalismo. 

Por isso, para mim é uma tristeza ver que o OI muda de direção, exerce censura e desrespeita um profissional. É em nome desse respeito à profissão e à liberdade de expressão que peço aos leitores para divulgarem esta informação. Grande abraço. (RM)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

HÁ 50 ANOS, A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS COLOCAVA FIM À MAIS LONGA DITADURA FASCISTA DA EUROPA


Às 0h25, pelo horário de Lisboa, do dia 25 de abril de 1974 tocava na então Rádio Renascença, católica e defensora da ditadura, a música Grândola, Vila Morena, composta por José Afonso. A música, banida no país pela censura, era a senha para a mobilização das tropas que iriam ocupar a capital portuguesa e derrubar o regime salazarista, existente desde 1926,o mais longo regime fascista em vigor então na Europa. 

Surgido no contexto das contrarrevoluções fascistas das décadas de 1920-30, o chamado Estado Novo foi fundado por António de Oliveira Salazar, um simpatizante de Mussolini e de Hitler, e tinha por base um pensamento ultramontano, de conservadorismo católico, tendência antimodernizante, corporativista e anticomunista. Durante suas quase cinco décadas de existência, transformou Portugal no país mais pobre e atrasado da Europa ocidental, graças, sobretudo, à resistência ao avanço pleno das forças capitalistas. O pilar do regime era a manutenção do extenso império transmarítimo, herança do período das navegações, que incluíam possessões na África, Ásia e Oceania. Em suma, cumpria um papel de retaguarda contrarrevolucionária na porta da Europa, pois economicamente nunca havia cumprido qualquer papel relevante no capitalismo contemporâneo.

"E Depois do Adeus" foi a primeira música tocada pelo movimento revolucionário, às 22h55 do dia 24. Era a senha para as tropas se prepararem para a saída às ruas. 

As colônias, inclusive, foram uma das causas fundamentais para o colapso da ditadura, pois havia quase dez anos Portugal levava adiante custosa e sanguinária guerra na África contra a independência de suas possessões, particularmente de Angola e Moçambique. Até 1974, a guerra já matara e mutilara dezenas de milhares, criando o descontentamento popular com os contínuos alistamentos e o gasto exorbitante para um conflito claramente já perdido. Era, guardadas as devidas proporções, o Vietnã português e, igual ocorria nos EUA à época, alimentava domesticamente uma situação revolucionária. 

E essa revolução acabou por vir. O golpe militar desfechado majoritariamente por capitães ocupou o Paço, sede do governo, tomou rádios, TVs, o aeroporto, quartéis e outros prédios públicos chave durante o começo da manhã. Não houve qualquer reação do regime e ao fim do dia, Marcelo Caetano, que havia assumido o poder após a morte de Salazar, se dirigia dentro de um blindado - para evitar o linchamento por parte dos populares - para o aeroporto, de onde seguiria para seu exílio no Brasil. 

Povo e soldados confraternizam
nas ruas de Lisboa

Entraram para a história as cenas dos agentes da PIDE - uma espécie de DOI-CODI português - sendo revistados apenas de cuecas pelos militares e depois sendo colocados para dentro das celas das delegacias, as mesmas que pouco antes eram ocupadas por presos políticos. 

O Movimento das Forças Armadas -MFA- triunfava pelo país e o povo afluía às ruas para celebrar junto aos soldados, com cravos vermelhos, cânticos de protestos e manifestações massivas. Mas ali era apenas o começo, pois a derrubada do regime foi o ponto inicial de uma profunda revolução socialista que iria se estender até 1975, mais precisamente até o golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro daquele ano, o qual colocou fim ao chamado Processo Revolucionário em Curso e marcou a vitória do capitalismo e o encaminhamento do país tal como é hoje. 

No entanto, as conquistas da revolução dos cravos são inegáveis. Portugal tinha níveis de pobreza semelhantes aos dos países da América Latina, com índices imensos de analfabetismo, mortalidade infantil e desnutrição. Hoje é um dos melhores países para se viver na Europa, com um robusto sistema de bem-estar social, apesar dos ataques feitos nas últimas décadas. Isso não teria sido possível sem a mobilização dos trabalhadores em conjunto com soldados durante aquele frenético ano de 1974-75.

Em um momento em que a extrema direita cresce por lá, como no resto do mundo, através do fascistóide Chega, de André Ventura, atacando e negando o movimento revolucionário de 25 de abril, é preciso rememorar a contundente ação popular e sempre sonhar com novas revoluções do cravo. (por David Coelho) 

"Grândola, Vila Morena", o verdadeiro hino de Portugal. 


quarta-feira, 24 de abril de 2024

SE CÁSSIO SOFRER A MESMA INGRATIDÃO QUE GYLMAR E RIVELLINO, CORINTHIANS PASSARÁ RECIBO DE QUE NÃO MERECE TER ÍDOLOS!

São Gilmar, o das defesas elegantes
Com portentosa atuação de Gylmar dos Santos Neves, o Corinthians, numa fase em que era saco de pancadas do Santos de Pelé, conseguiu um heroico empate por 1x1 em plena Vila Belmiro, no último domingo de julho de 1960. Euforia.

Logo no meio da semana, contudo, perdeu por 3x2 do nanico Jabaquara no Parque São Jorge e a infiel torcida decidiu que o extraordinário goleiro, único jogador corinthiano titular do escrete campeão do mundo em 1958, falhara de propósito  para ser vendido ao Santos.

De onde surgiu uma suspeita tão destoante do caráter do acusado? É que um atleta adversário, exímio cobrador de faltas, fizera 1x0 com um chute colocado; Gylmar, atrapalhado pela barreira, pulou atrasado. Aí, no final da partida, nova falta perigosa surgiu e ele dispensou a barreira, sendo novamente vencido, dessa vez por um petardo. 

Final: 3x2 para o Jabuca e Gylmar, que ainda não havia decidido se aceitaria a proposta do maior time brasileiro de então, começou imediatamente a fazer as malas. Seria bicampeão mundial tanto pelo Brasil em 1962 quanto pelo time praiano em 1962/63 (Torneio Intercontinental uma ova!). 

Roberto Rivellino, o garoto do Parque, teve de ir embora do Parque por causa da hostilização dos infiéis torcedores: depois de ele carregar o fraco time alvinegro nas costas ao longo do campeonato paulista de 1974 inteiro, não conseguir evitar o empate (1x1) e a derrota (0x1) nas duas partidas da final contra o Palmeiras. O único titular corinthiano da seleção brasileira que conquistou  o tri em 1970 também recebeu um pé na bunda como prêmio.
Rivellino se tornou titular do Corinthians aos 19 anos

Agora chegou a vez do segundo jogador que mais vezes (712) vestiu a camisa do Corinthians em todos os tempos e principal responsável pelas duas maiores conquistas do
timão ao longo de sua história centenária, a Libertadores e o Mundial de Clubes de 2012.

Embora esteja alternando boas e más exibições, Cássio Ramos nem de longe merece ser feito de bode expiatório pelos erros crassos da última e da atual diretorias corinthianas, muito menos pagar pelo papelão que alguns jornalistas caçadores de bruxas fizeram ao ressuscitar um episódio de 35 anos atrás para impedir o sexagenário técnico Cuca de continuar treinando o Corinthians. 

Como Cássio comandara o elenco numa manifestação de solidariedade ao Cuca após uma vitória difícil, virou alvo desses macartistas de esquerda, que mais inconformados ainda ficaram quando o episódio recentemente teve uma reviravolta, terminando com a admissão por parte da corte estrangeira de que:
— a sentença contra o Cuca, decidida sem que lhe fosse garantido o direito de defesa, só poderia ser, como foi, definitivamente anulada; e
— novo julgamento é impossível, pois o episódio  já está prescrito faz uma eternidade.
Cássio salvando gol do Chelsea em 2012

A campanha de desqualificação do Cássio, insuflada por pessoas que atuam mais como identitárias fanáticas do que como jornalistas, bem como por torcedores tão descerebrados quanto aqueles que detonam as últimas tentativas de reação do time lançando sinalizadores que levam à interrupção da partida por vários minutos, finalmente tirou Cássio do sério. 

Após a derrota deste meio de semana, na qual o time inteiro atuou pessimamente e o técnico mostrou estar perdido no espaço, Cássio deu sofrida entrevista queixando-se da perseguição encarniçada que sofre e propondo-se a sair se for ele que estiver atrapalhando o Corinthians.

Haverá uma reunião com o ridículo presidente atual para tratar do caso. Se Cássio sofrer o mesmo destino de Gylmar e Rivellino, o Corinthians vai passar recibo de que não merece ter ídolos exemplares como ele, mas sim boleiros com a estatura moral do Luan e do Matias Rojas. (por Celso Lungaretti)
Atualização: a reunião com o Cássio já aconteceu e o parasita encartolado da vez lhe prometeu total apoio "como jogador e como ser humano" para superar este período difícil. Como as garantias do dito sujo valem tanto quanto notas de 3 reais, o ídolo do timão que se cuide: se a infiel torcida pedir a cabeça do passador de promessas sem fundo, não tenho a mais remota dúvida de que ele entregará a do Cássio numa bandeja para salvar a própria. (CL)   

LUTA PELA PALESTINA PODE LEVAR OS EUA A NOVO LEVANTE ESTUDANTIL

 

Milhares de estudantes universitários estão tomando seus campi em massivos protestos contra a parceria dessas instituições com o Estado de Israel. Na última quinta-feira, 18/04, mais de cem estudantes que acampavam no campus da Universidade de Columbia, em Nova York, foram presos pela polícia local após a reitora, Nemat Shafik, ter jurado perante o Congresso dos EUA que iria iniciar duro processo de repressão aos movimentos estudantis pró-Palestina

Sob a falácia de que tais protestos estariam disseminando o antissemitismo - a velha falsa cartada -, a feitora da referida universidade autorizou a entrada da polícia no espaço universitário para colocar fim ao acampamento. Além disso, impôs suspensões a dezenas de estudantes envolvidos nas manifestações. Contudo, o tiro, mais uma vez, parece ter saído pela culatra, pois dezenas de outras universidades ao redor do país também começaram a registrar atos massivos de protesto contra o massacre perpetrado por Israel ao povo palestino. 

Longe de serem espaços livres do saber e da crítica, as universidades estadunidenses, controladas por poderosas fundações privadas e sustentadas por inúmeros conglomerados empresariais, são parte da estrutura capitalista, fornecendo tecnologia de ponta, construções ideológicas e quadros para a continuidade da reprodução do capital. Nesse sentido, são essenciais para o pleno funcionamento da maquinaria militar dos EUA e de seu Estado-fantoche Israel. 

Polícia prende estudante na Universidade de
Columbia, em Nova York

Ao se levantarem exigindo que as universidades encerrem seus vínculos com o terrorismo sionista, os estudantes não apenas se colocam contra o massacre israelense, mas também colocam em xeque a própria lógica de inserção dessas universidades na dinâmica do capitalismo global. Daí a reação furiosa dos "financiadores", na realidade, autênticos proprietários das universidades,  que passaram a exigir que os reitores agissem contra os manifestantes. 

Aos poucos, vai surgindo um levante universitário semelhante ao ocorrido na época da guerra do Vietnã, quando milhares de estudantes também tomaram os campi universitários ao redor dos EUA para protestar contra a continuidade do conflito, tendo por ápice trágico o assassinato de quatro estudantes pela polícia no campus da Universidade Estadual de Kent, no Ohio. Até o momento, de acordo com o New York Times, pelos menos cinco campi de importância no país já registraram ocupações e confrontos com forças policiais e o número poderá crescer. 

Em 1970, na Universidade de Kent, a polícia
matou quatro estudantes em ação semelhante
às atuais

É de conhecimento generalizado que os levantes estudantis prenunciam levantes sociais mais amplos. Por estarem mais sensibilizados às pressões econômicas e serem menos atrelados às dinâmicas hierárquicas do mercado de trabalho, os estudantes tendem a abrir a trilha da revolta social antes dos demais grupos, bastando lembrar do exemplo mais emblemático de maio de 1968. O que está começando como manifestações contra o massacre ao povo palestino pode rapidamente escalar para algo mais generalizado, sobretudo se as universidades continuarem seguindo a política repressiva. 

A causa é justíssima, pois não se pode fechar os olhos aos massacres perpetuados por Israel. É preciso definitivamente dar um basta aos contínuos crimes desse país e, para isso, é preciso derrotar a máquina que o sustenta, que está localizada nos próprios EUA. Destronar o Imperialismo ianque é fundamental para dissolver a base de sustentação israelense. 

O anão Biden, morto-vivo da história, já percebeu o caos prenunciado e essa semana condenou as ações estudantis, já sentindo que ele pode ser o próximo Nixon. (por David Coelho)

terça-feira, 23 de abril de 2024

HÁ 100 ANOS NASCIA PAULO VANZOLINI, UM IMPRESCINDÍVEL DA MPB.

Quem não conheceu o autor, ator, roteirista e produtor de cinema e teatro, jornalista, cronista, médico, etc., Silveira Sampaio, não tem ideia do grau de sofisticação que um talk show já atingiu nestes tristes trópicos. 

Dos apresentadores que vieram depois, Jô Soares, evidentemente, foi o mais brilhante. Mas não daria nem para a saída numa comparação  com esse que foi o pioneiro dos talk shows televisivos, em 1957, com seu SS Show na TV Rio. 

Era o programa ideal para seus atributos de homem com vastíssima cultura, expertise em várias modalidades artísticas e capacidade de ser simpático mesmo quando fazia comentários políticos pra lá de mordazes.   

Foi no SS Show que fiquei conhecendo o grande Paulo Vanzolini, que nesta 5ª feira (25) estaria completando 100 anos (morreu em 2013). 

Eu cursava o ginásio à noite e, de volta para casa, assistia às únicas atrações de TV interessantes que adentravam a madrugada: os ótimos filmes europeus que a TV Excelsior só exibia porque lhe saíam mais baratos do que os abacaxis estadunidenses; e, quando a fita daquele dia não me agradava, o programa do Silveira Sampaio.    
A entrevista com o Vanzolini, a quem não conhecia, foi tão boa que não preguei o olho nem por um segundo. Fiquei surpreso ao saber que um homem de ciência (durante o dia era eminente zoologo, à noite boêmio da gema) tinha composto verdadeiras pérolas da MPB.

Eu gostava, principalmente, de "Volta por cima", que chegara a tocar muito nas rádios (logo adiante, ela se completaria às mil maravilhas com a obra-prima de Glauber Rocha, 
O dragão da maldade contra o santo guerreiro, destacando um dos trechos culminantes do filme).

Foi também adiante que fiquei conhecendo e gostando de outros clássicos de Vanzolini, como "Ronda", "Chorava no meio da rua", "Napoleão" e "Praça Clóvis". 

Além, claro, do "Samba erudito", que poderia até servir-lhe como cartão de visita musical: nenhum erudito conseguiu, jamais, soar tão espontâneo como sambista!

Mas, voltemos  àquele longínquo SS ShowLá pelas tantas, Vanzolini contou a história da "Capoeira do Arnaldo".

Ele costumava terminar suas noites na boate Jogral, do amigo e também compositor Luiz Carlos Paraná. E foi desafiado por outro amigo, chamado Arnaldo, a criar uma música com utilização perfeita de jargão regional. 

De estalo, escrevendo a letra num guardanapo de papel, Vanzolini compôs sua inspiradíssima capoeira, com todo jeitão nordestino.

Foi interpretada no programa do Silveira Sampaio por Luiz Carlos Paraná, que Vanzolini levara a tiracolo pra isso mesmo... 

Mas, ressalvou, como a compusera para presentear um amigo, não a disponibilizaria para lançamento em disco. Amei a música e detestei saber que nunca mais a escutaria de novo.

Lá por 1973, contudo, ao passar por um  sebo  do meu amado centro velho de São Paulo, percebi, maravilhado, que a música sendo tocada na vitrola para atrair fregueses era a "Capoeira do Arnaldo"! 

Ignorava que, certamente atendendo aos apelos gerais, Vanzolini acabara permitindo sua gravação. Comprei e toquei até o compacto simples ficar riscado.

De tanto ouvir, decorei a (longa) letra inteirinha. E em sentido figurado, não literal, sempre encarei a última estrofe  como um resumo da minha trajetória:

 

"Eu sai da minha terra/ por ter sina viageira./ Cum dois meses de viagem,/ eu vivi uma vida inteira:/ sai bravo, cheguei manso,/ macho da mesma maneira./ Estrada foi boa mestra,/ me deu lição verdadeira:/ coragem num 'tá no grito,/ nem riqueza na algibeira/ e os pecado de domingo/ quem paga é segunda-feira".
"Na boca da noite", parceria com Toquinho, é outra canção de beleza cristalina, que me tocou profundamente. Tinha tudo a ver com aquela época em que nossos amores eram necessariamente fugazes, mesmo porque não sabíamos que horrores poderiam nos atingir nas próximas horas. Embora não fosse esta a intenção de Vanzolini, foi o que então significou para mim esta pungente estrofe:
"Gente da nossa estampa/ não pede juras nem faz:/ ama e passa e não demonstra/ sua guerra, sua paz ./ Quando o galo me chamou,/ eu parti sem olhar pra trás,/ porque, morena, eu sabia,/ se olhasse, não conseguia/ sair dali nunca mais".
Vanzolini foi gênio. Foi superlativo. Foi um imprescindível da MPB. (por Celso Lungaretti)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

TRAIÇÃO ÀS DIRETAS-JÁ ABRIU CAMINHO PARA A REDEMOCRATIZAÇÃO CONSENTIDA

Por este placar os paulistanos viram, voto a voto,
a emenda Dante de Oliveira ir sendo rejeitada...
Foi de arrepiar a campanha das 
diretas-já, desenvolvida pela cidadania para convencer o Congresso Nacional a aprovar a emenda Dante de Oliveira, que restabelecia imediatamente as eleições diretas para presidente da República.

Houve uma série de grandes comícios nas nossas principais capitais, alguns deles reunindo até 1 milhão de brasileiros (o derradeiro, em 16/04/1984, cravou a incrível marca de 1,5 milhão!) que não suportavam mais a bestialidade & boçalidade impostas pelos golpistas de 1964.

As minhas melhores lembranças são:

— o mar de camisas amarelas sinalizando a volta da esperança;

— o incrível tour-de-force de Leonel Brizola que, em função da mesquinha disputa de espaço político no campo da esquerda, começou sob vaias seu discurso numa manifestação das diretas-já na Praça Clóvis (SP) e, com sua fala empolgante, conseguiu colocar o público a seu favor, terminando sob aplausos generalizados; e

— a promessa do craque Sócrates em comício-monstro no Anhangabaú (SP), de que, caso fosse restituído ao povo brasileiro o direito de escolher seu presidente, ele ficaria aqui para contribuir na redemocratização, recusando a proposta astronômica da Fiorentina.

Infelizmente, o Congresso rejeitou naquele funesto 25 de abril a emenda Dante de Oliveira e a eleição acabou sendo, mais uma vez, indireta. 

Aí, parte dos parlamentares que haviam frustrado a vontade popular abandonou o partido da ditadura (o PDS, sucessor da Arena) e formou uma nova agremiação (o PFL, depois DEM) que, unida ao PMDB, assegurou a vitória do peemedebista Tancredo Neves no colégio eleitoral.

Os vira-casacas de última hora receberam as recompensas de sempre.
...por haver obtido só 62,6% de  votos favoráveis e não os
66,67%  que seriam necessários. Os ausentes decidiram.

Um dos piores deles era José Sarney,  que presidia o PDS mas estimulou a dissidência que viraria PFL... tendo, contudo, ele próprio se filiado ao PMDB, provavelmente para tornar mais digerível sua indicação para vice na chapa de Tancredo (a qual, evidentemente, já haveria sido articulada nos bastidores).

A presidência acabou lhe caindo no colo: como Tancredo, vitimado por uma infecção generalizada, nem sequer pôde assumir (Deus castiga!, diziam os antigos), o primeiro presidente pós-ditadura acabou sendo alguém que, meses antes, era um dos mais servis serviçais dos militares.

Eis as perguntas que não querem calar:
1. quando, exatamente, esses congressistas de origem  arenosa  decidiram desembarcar da canoa furada da ditadura?
2foi só depois de eles terem assegurado, com seus votos, a rejeição da emenda Dante de Oliveira?
3ou já era este seu objetivo desde o início, tendo voltado as costas ao povo para depois obterem bom preço nas barganhas com o PMDB?

Nunca tive a menor dúvida de que o jogo foi de cartas marcadas: o carteador trapaceou!
Foto divulgada para tranquilizar os brasileiros quanto  ao
estado de saúde do Tancredo; causou péssima impressão
.

O certo é que, pelo voto popular, daria Brizola ou Lula; pela via indireta, no infame tapetão, deu Tancredo.

A grande imprensa, sob a batuta da Rede Globo, tudo fez para vender o conceito de que tal saída da ditadura pela porta dos fundos era o coroamento das diretas-já

Fomos poucos os que, não só percebemos o embuste, como nos mantivemos coerentes com nossos valores, e, em meio à euforia orquestrada, denunciamos que tinha sido, isto sim, o resultado de uma traição à causa que havia mobilizado intensamente os melhores brasileiros

O oba-oba saudando a Nova República foi poeira colorida atirada nos olhos dos videotas, que acabaram engolindo gato por lebre: uma redemocratização pela metade, com expressiva participação de remanescentes ou cúmplices da ditadura, ao invés da verdadeira ruptura com o totalitarismo que a aprovação da emenda Dante de Oliveira teria propiciado.

Vai daí que não se investigaram as atrocidades cometidas pelo regime militar, nem se julgaram os criminosos (já que haviam anistiado preventivamente a si próprios!).
A eles se juntaria em 2016 a Dilma, segunda impichada

E, por havermos deixado passar o momento ideal para a apuração e punição dos responsáveis por tais episódios infames, a impunidade das bestas-feras e dos seus mandantes se tornou inevitável e irreversível. 

Impotente para mudar o rumo daquela farsa coonestada por uma esquerda já então ávida pelos nacos de poder que poderia conquistar sob a democracia burguesa, só pude desabafar:
"Não, não serei eu a tecer loas à transição manipulada que deu fim à ditadura militar sem mudança real na composição do poder (só nos métodos...) e sem que deixassem o povo decidir quem ele queria colocar no lugar do último general ditador. 
Nem endeusarei jamais! o político conservador com carisma zero que preferiu ver os brasileiros derrotados mais uma vez, desde que isto lhe permitisse apropriar-se da faixa presidencial sem passar pelo crivo das urnas".  
Enquanto isto, os bons companheiros engoliam não só o matreiro Tancredo Neves como (até mesmo!) o camaleônico José Sarney.  

Então, acabou sendo Sarney o presidente da redemocratização e, claro, esta ficou pela metade, exatamente por ser uma redemocratização consentida, sem coragem política para ultrapassar os limites traçados pelos que, presumivelmente, estariam deixando o poder. (por Celso Lungaretti
Brizola, por sua atuação destacada para frustrar o golpe já em 
1961, era quem os militares menos aceitariam como presidente.
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