Eu tinha quase 14 anos quando o golpe, cinicamente apelidado de a redentora pelos golpistas, foi deflagrada em 01 de abril de 1964, quando as tropas do General Olímpio Mourão Filho desceram de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro num desfile de soldados e veículos diante de uma população indiferente àquilo que mais parecia um treinamento militar do que uma insurreição golpista.
Havia no Brasil de 1964 uma insatisfação popular gerada pelo alto índice de inflação de 1963, que alcançou o patamar de 83,2% ao ano e pela queda no crescimento econômico, que saiu de 6,6% em 1962 para 0,6% em 1963.
O plano trienal do ministro Celso Furtado não deu os resultados esperados e o governo João Goulart impôs medidas de contenção de despesas e restrição de crédito que provocaram insatisfações inevitáveis. O povo brasileiro - e é assim no mundo inteiro onde há eleições - vota nos governantes pelo bolso.
Com as más notícias da economia, gerou-se uma insatisfação popular insustentável diante de um quadro de contradições governamentais geradas pelo fato de que João Goulart, um populista político, misto de latifundiário rural dos pampas e trabalhista nacionalista, guardava a identidade política do governo getulista de quem fora ministro do Trabalho, mas sem jamais ser um comunista como queriam os membros do Partido Comunista Brasileiro e como temia o establishment naqueles tempos de guerra fria e de revolução cubana.
Os militares, que ambicionavam a volta de influência política no poder desde o general Eurico Gaspar Dutra, e que haviam se frustrado com o suicídio de Getúlio Vargas, responsável por abortar o golpe já consolidado naquele 24 de agosto de 1954, viram em 1964 as condições ideais para a tomada do poder.
Os Estados Unidos, temerosos do alastramento do exemplo revolucionário cubano, vinham programando uma contenção do poder político pela força militar na América do Sul, fato que se comprovou posteriormente na Argentina e Chile, emprestou apoio político e militar preventivo para o golpe de 1964, estacionando grande poderio bélico e tropas de prontidão desde o Caribe até a costa brasileira, caso fosse necessário, na chamada operação Brother Sam.
Não foi necessário: o golpe militar de 1964 teve apoio considerável da população brasileira sob o comando conservador da elite política, econômica, cultural e religiosa brasileira e a esquerda brasileira, sempre confiante em governos populistas dito de esquerda, de uma hora para outra percebeu que estava quase sozinha na defesa das bandeiras reformistas e capitulou sem resistência.
Assim, seus membros sofreram o diabo nas mãos dos militares, que voltaram as costas até mesmo para seus apoiadores de primeira hora como Carlos Lacerda e Juscelino Kubitscheck, crédulos na restauração das eleições civis em 1965, e que sofreram posteriormente a cassação dos direitos políticos, providências que se tornaram extensivas a muitos outros políticos incautos.
Mas a dinâmica da dialética do movimento social terminou por demonstrar à população brasileira no início dos anos 80 do século passado, a insustentabilidade dos métodos e posturas dogmáticas capitalistas dos militares e seus governos caíram de podre.
Mas como a memória coletiva é curta, há quem defenda a volta desses ao poder político, orientados por uma cegueira elitista que não consegue enxergar um palmo diante do nariz e quer a volta ao passado, como se fosse possível restaurar o uso da máquina de escrever em substituição ao computador da era digital.
Não nos iludamos! As mudanças de conceitos e costumes aculturados nas mentes populares, mesmo que perversos e contrários aos interesses da maioria, são difíceis de serem superados num estalar de dedos, até porque é sempre mais fácil a acomodação de sobrevivência com o que se conhece, mesmo que ruim, do que com o desconhecido, ainda que possa ser aparentemente promissor.
Mas, hoje, a conjuntura é outra, ainda que o conservadorismo esteja nas mentes inseguras e desinformadas dos oprimidos, a grande maioria, o fato é que o capitalismo apodrece.
Vivemos a era na qual a contradição entre forma e conteúdo do capitalismo está de tal forma inviabilizando a vida social que a própria intelectualidade elitista revisa os seus conceitos e estabelece uma divisão profundamente polarizada de posturas entre conservadorismo e progressismo político.
Não é a miséria que se aprofunda aquilo que é capaz de promover a superação das categorias capitalistas, porque se assim fosse, a África seria o paraíso na terra, mas é o pensamento e a ação orientadora de conceitos feita a partir de uma juventude engajada num processo de ruptura e orientada por uma filosofia da práxis emancipatória, aquilo que será capaz de promover o início da emancipação humana.
Lula foi eleito pela lembrança de seus dois governos anteriores que fora bafejado pela sorte de uma conjuntura internacional de elevação dos preços das comodities, que é o que o Brasil tinha e tem para vender. Dilma caiu por conta da explosão de insatisfação de 2013. Os dois fenômenos são iguais no conteúdo mais profundo e incidem sobre um mesmo partido político e ordem capitalista decadente.
Mas hoje a situação é outra, pois vivemos sob um processo de depressão capitalista mundial que vem se acentuando desde a crise do sub prime de 2008/2009, sem que os mecanismos de contenção, como aqueles usados na grande depressão de 1929/1930, sejam possíveis de aplicação.
O responsável pela crise profunda e irreversível do capitalismo é a era da cibernética e sua terceira revolução industrial.
Somos atendidos na entrada de um shopping por uma voz mecânica e uma máquina que nos entrega o cartão do estacionamento; pagamos a estadia numa máquina e saímos ouvindo o som agradecido de uma voz que nos convida a uma volta breve;
- ouvem-se músicas gratuitamente numa plataforma de streaming sem que precisemos comprar um CD, o que significa que as gravadoras detentoras da propriedade musical estão falindo, e os músicos só trabalham em estúdios de gravações, sendo que os DJs estão substituindo os cantores e bandas;
- os operários das indústrias automobilistas foram substituídos por robôs e os sindicatos metalúrgicos mendigam empregos e perdem força de barganha por aumento de salários, mesmo diante de uma inflação que ameaça a deterioração do poder aquisitivo;
- os donos de postos de gasolina e todo o sistema de transporte e abastecimento de gasolina e óleo estão diminuindo celeremente diante do uso dos carros elétricos e isso causa falências e uma enormidade de desempregos;
- a comunicação digital substituiu os jornais, os livros, os panfletos, e todos os meios de comunicação impressa, e isso levou ao fechamento de jornais, editoras e livrarias;
- as lojas estão fechando e a cena urbana é de decadência por conta dos espaços vazios que viraram estacionamentos sem veículos, porque tudo se compra virtualmente, causando o desemprego de vendedores, redução dos lucros e falência dos lojistas, com o abandono dos prédios respectivos;
- cursos superiores à distância são ministrados de forma online, o chamado EAD;
- fala-se, hoje, com a Islândia, no extremo norte, com a mesma rapidez e nitidez com que se fala com o vizinho de residência;
- os advogados e juízes não mais comparecem aos fóruns, porque toda a comunicação é virtual e sem uso de papel, que está reduzindo o lucro das empresas de celuloses;
- médicos fazem cirurgias à distância com o uso de robôs;
- engenheiros fazem cálculos complexos em segundos no computador;
- pagamentos e movimentações de contas bancárias se operam por aplicativos em segundos;
- obtém-se instantaneamente informações pelo celular ou computador que antes era necessário se comparecer a uma biblioteca para obter as informações desejadas;
- arquivos de dados e informações sobre qualquer assunto são armazenados e analisados a um toque de computador ou de celular;
- receitas de comidas, diagnósticos de doenças, e até formulas químicas e qualquer instrução sobre a fabricação de artefatos diversos são possíveis de serem obtidos instantaneamente pela internet;
- sabe-se mais sobre o curriculum das pessoas e seus dados pessoais do que eles mesmas podem perceber;
- a tal da inteligência artificial é capaz de produzir imagens de locais e acontecimentos como se fossem verdadeiras(os) e reproduzir gestos e vozes de uma pessoa com a mesma fidelidade como se fosse ela mesma a fazê-lo...
Ufa! Os exemplos seriam intermináveis e isso tudo era antes, e há bem pouco tempo, simplesmente inimaginável.
As relações sociais sofreram substanciais mudanças de comportamento em face das alterações de produção de mercadorias e serviços que estão a exigir uma reflexão sobre a contradição entre as formas antigas e seus conteúdos diante de mudanças drásticas que alteraram a substância dessas duas questões e seus conteúdos.
Querer que o sapato caiba no pé independentemente do tamanho de um e do outro é inviável; precisamos, portanto, de uma adequação do sistema de produção e distribuição de bens e serviços à realidade que a dinâmica da aquisição do saber colocou a nosso favor, e não contra nós, como agora acontece.
O saber é revolucionário e colocou em xeque a ilogia capitalista.
Como se pode, portanto, admitir, que o conservadorismo recalcitrante e obsoleto possa querer continuar usando métodos antigos para a solução de problemas novos?! (por Dalton Rosado)
Um comentário:
Caro, Dalton
É uma satisfação tê-lo de volta a nos brindar com seus textos inteligentes e
instigantes.
https://youtu.be/w4xGFw4DlKE?si=U9ompSvCKTrOzrEQ
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