segunda-feira, 2 de outubro de 2023

MARIA DAS GRAÇAS (1950-2023): FOI ELA QUE ME CONDUZIU AO BOM COMBATE.

A Maria das Graças morreu na madrugada de hoje (2).

É como a conhecia. Viera com a família de Alagoinhas, BA, porque o pai, Mário Alves de Souza, era um estimado comunista de cidade pequena (eis aqui uma comovente crônica sobre ele), que ficara, contudo, visado após o golpe militar de 1964.

Ela não demorou para enturmar-se com jovens do movimento estudantil. E, morando com os pais e seus cinco irmãos na rua Itamaracá, Mooca, estudava em 1967 no Colégio Estadual MMDC, na mesma classe noturna do Eremias Delizoicov, a quem eu conhecia desde o primário.

Lá por março ou abril, o Eremias  me chamou durante o recreio para me apresentá-la. Disse que ela também gostava de literatura (o que era bem raro entre as meninas do tempo da Jovem Guarda e dos bailinhos).   

Conversamos. Ela me falou de escritores brasileiros, principalmente do Jorge Amado. Eu conhecia mais os estrangeiros, como Sartre. Éramos ligados na MPB engajada daquela época (Chico, Vandré, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil, etc.). Havia filmes de que ambos havíamos gostado. Convidou-me para conhecer a família e comer, se bem me lembro, cocada de forno baiana.

Assim como o Eremias, fiquei amigo dela. E talvez por isso, nenhum de nós propôs-lhe namoro. Quebraria um encanto qualquer se um resolvesse tornar sua a prenda, em detrimento do outro...
Seu pai era dirigente comunista: Mário Alves de Souza

Mas, os papos com a Maria foram me fazendo perceber que eu não encontraria no Brasil o que estava procurando desde os 14 anos, mais ou menos (estava com 16): uma alternativa ao futuro que minha família desenhara para mim, qual seja o de brilhar nos estudos, virar engenheiro, ganhar bem, ter casa luxuosa e também casa de campo, carro,  esposa prendada, etc.

É mais ou menos o sentimento a que o Raul Seixas chegou "depois de ter passado fome dois anos na Cidade Maravilhosa" (canção
Ouro de Tolo). Eu nem precisei vencer concretamente na vida para concluir também que tudo isso era um saco. Dava para eu perceber que obteria êxito numa trajetória dessas e lá pelos 35 anos estaria morrendo de tédio.   

Convenci-me de que, para romper com as aspirações da classe média e tomar outro caminho, de nada me serviriam o existencialismo do Camus ou os labirintos kafkianos. A contestação política era o único caminho ao meu alcance para atravessar o Rubicão. 

[Embora não fosse nenhum deslumbrado: sempre soube que não era a opção perfeita... porque tal não existia. O jeito, se dela fizesse questão, era arregaçar as mangas e tentar criá-la...]

Decisão tomada, parti para a ação. Decidir trocar a 2ª série do Científico de Engenharia pela do Clássico no meio do ano, fazendo  alguns exames de adaptação.  Caí justamente na classe do editor do jornal dos estudantes do MMDC, que de imediato publicou um artigão meu em solidariedade ao movimento universitário.

O Eremias tinha 18 anos ao
ser executado com 35 tiros
 

Pouco depois, pediu-me para assumir o jornal, porque ele andava atarefado demais. Continuei fazendo artigos, contos, poesias, enquetes ("Os EUA beneficiam ou prejudicam o Brasil?") durante todo aquele semestre. Os professores até gostavam, porque eu escrevia com cacoetes literários, o que era também raridade na Mooca. 

A Maria continuou responsável pela página feminina (na verdade, já então feminista) e também escreveu algo avulso sobre a Anne Frank, depois de a interpretar numa peça montada por dois colegas do próprio MMDC. Tenho a impressão que destacou até no título a frase célebre, que disse com tanta ênfase no teatro: "Apesar de tudo eu ainda creio na bondade humana"

Lá por janeiro de 1968, eu e o Eremias fomos convidados pela Maria para passarmos alguns dias estudando e discutindo marxismo juntamente com outros pupilos que ela estava conscientizando, um casal de irmãos do bairro vizinho do Belém. Como
mestre veio um veterano do movimento secundarista, filho de um dirigente do PCB e que já militara na Polop, o Marcos Vinícius. 

Guardada as proporções, foi parecido com o que Godard adiante mostraria em A chinesa. No final, o convite para irmos adiante, engajando-nos na chamada Dissidência Universitária, que seguia na esteira do Carlos Marighella. Eu e o Eremias topamos. Os irmãos do Belém, não.

Mantenho a opção revolucionária até hoje. O Eremias a manteve até ser assassinado como militante da VPR, nem dois anos depois.

Mal reiniciadas as aulas, participamos de nossa primeira passeata, em protesto contra o assassinato do Edson Souto no RJ. E passamos 1968 inteiro tentando reerguer a partir da base o movimento secundarista paulistano, por meio da entidade que criamos, a Frente Estudantil Secundarista, visando à tomada da União Paulista dos Estudantes Secundários no congresso marcado para novembro.
Pobre e decadente como costumam ser bairros de
centos históricos, o Pelourinho fascinava a Maria

Foi um ano de:
— agitações nas escolas, vez por outra tínhamos de pular muros para conseguir falar com os alunos e escapar dos inspetores;
— de paralisação do curso noturno do próprio MMDC numa noite de sexta-feira (que valeu à Maria, ao Eremias, ao Diego e a mim transferências compulsórias, como líderes do protesto);
— de reforço na convocação de estudantes para as passeatas e outros atos, como o 1º de maio selvagem na Praça da Sé; 
— de apoio à greve de Osasco (fomos distribuir panfletos naquela cidade ocupada pela polícia);
— de descobertas pessoais (como a de que, estando a Maria acamada com hepatite, ter sido capaz de liderar uma passeata de mil secundaristas, ou a de que, embora detestasse as aulas de educação física, com a repressão nos calcanhares eu conseguia até emparelhar com o Eremias na corrida...).

Engajamos ao redor de nós e conscientizamos uma centena de jovens, que se tornaram nossos simpatizantes e aliados, mas não estavam preparados para seguir-nos no pesadelo que viria. 

O terrorismo de estado foi se bestializando cada vez mais, com seus efetivos próprios e com paramilitares ultradireitistas que desfrutavam de total liberdade de ação. Foi quando se deu a cisão da Frente Estudantil Secundarista:
— os líderes da Zona Centro ingressaram com o Marcos Palácio para a Dissidência Universitária, que afinal desistiu de incorporar-se a um agrupamento maior formado pelo Marighella, decidindo assumir-se como organização autônoma, mesmo tendo pouca penetração fora do meio estudantil;
— dos nove dirigentes da Zona Leste, a Maria ficou ao lado do Palácios, com quem já estava tendo um relacionamento sério, e os outros oito preferimos buscar uma organização com suficiente experiência para nos conduzir (todos tínhamos entre 17 e 21 anos de idade) pelos caminhos perigosos da luta armada.

No fim de 1968, ainda nos enfrentamos no congresso da Upes que, melancolicamente, acabou ocorrendo quando todos sabíamos que algo muito ruim estava para vir, de forma que  de nada serviria aquele baile da Ilha Fiscal do qual participávamos. A tendência do Palácios venceu... e logo foi varrida de cena.

A mesma admiração que a Maria despertara no Eremias e em mim tinha se reproduzido na convivência dela com o Diego, o Edmauro, o Gerson, o Gilson, o Mané e a Tereza. A separação foi dolorosa, muitos belos momentos ficaram para trás, tantos sonhos e esperanças que havíamos compartilhado!

Esta é a Maria das Graças das minhas lembranças de um tempo em que estávamos nos construindo e forjando nossas personalidades em clima de aventura, com os acasos ainda nos poupando dos golpes  cruéis do destino. Estes ficaram para o ano seguinte. 

Quanto à jornalista e educadora Maria das Graças Lima de Souza Palácios, nunca calhou de nos vermos em Salvador ou São Paulo, mas a partir do lançamento do meu livro Náufrago da Utopia retomamos o contato, só que virtual. 

Talvez tenha sido melhor assim, pois quase 55 anos depois mal nos reconheceríamos. Prefiro lembrar-me sempre dela como era quando a conheci, a Maria com 17 anos e eu tendo quatro meses menos.

Ela tentou e não suportou viver no Brasil hediondo de Médici, indo para Liverpool com o Palácios após trabalhar entre 1969 e 1972 no Jornal da Bahia. Seu exílio durou dez anos e ela voltou graduada em sociologia. Como professora, aprofundava-se na temática da desigualdade social na realidade urbana.

Obteve muito destaque com sua dissertação de mestrado sobre a reforma do Pelourinho, na qual resgatou aspectos importantes da memória popular do bairro. Em algumas mensagens que me enviou na década passada, fez críticas pesadas às autoridades baianas que não lhe deram condições de viabilizar suas propostas para a melhora do Pelourinho, ao qual afeiçoou-se muito.

Nos seus últimos dias, o Palácios formou o grupo virtual Sobre Maria, que teve ampla participação de parentes, ex-colegas, ex-alunos, conhecidos e amigos, inclusive dezenas do seu exílio inglês. 

Sua lembrança continuará inspirando os melhores seres humanos. De uma forma ou de outra, todos demos e damos nossa contribuição na luta contra a desumanidade. É importante que esta lição fique registrada para os pósteros. (por Celso Lungaretti) 

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi Celso. Amei sua homenagem à Maria das Graças Lima de Souza Palácios. Me emocionei. Ver rever as histórias que vivemos tão jovens, inocentes, né. São muitas. Estivemos almoçando c Celcinho. lucia irm

celsolungaretti disse...

Lucinha, há quanto tempo! Que bom te saber viva e bem!

Se vc estiver em Sampa, podemos até tomar uns chopps e colocar as lembranças em dia. Chame-me no zap: (11) 94158-6116. Mas não por telefone de empresa, detesto chamadas comerciais e não atendo quando o celular adverte que pode ser o caso.

É ao Celso diagramador, que morava na Mooca e tinha uma irmã mais nova, que vc se refere? Não me lembro quem, mas alguém me disse que ele havia morrido de câncer.

Veio-me agora na cabeça a imagem de outro Celso, a quem conheci menos. Com qual dos dois vc almoçou?

E o Edmauro, vc voltou a ver? Nos tempos de movimento secundarista ele tinha uma verdadeira adoração por ti.

Vamos conversar, temos mesmo muito que contar um ao outro. Um abração!

Anônimo disse...

Oi Celso, tudo bem por aí?
Bem, sempre uma mulher a nos inspirar,
não é verdade? Lamento a perda.
Tenho uma dúvida: Qual a real formação acadêmica
do atual ministro dos direitos humanos?
Ele tem mesmo formação em filosofia?
Dizem que nunca frequentou, nem mesmo,
reuniões de sindicato. Você, David,
ou Dalton já cruzaram com o ele?
Abraço do Hebert.

celsolungaretti disse...

Parece-me ter formação suficiente como scholar, mas nunca ter-se destacado por suas intervenções em questões candentes dos DH. Francamente, antes de sua convocação pelo Lula, eu nem sequer sabia quem era.

Também não vi nenhum sentido na ideia de reconvocar a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Para quê? Se de antemão sabemos que os governos do PT sempre recuam quando os militares impõem limites.

Foi vergonhoso a Dilma não ter dado força para que a Comissão Nacional da Verdade avançasse um milímetro além do que já se sabia, chegando ao cúmulo de omitir-se quando duas testemunhas importantes contra o DOI-Codi provavelmente foram alvos de queima de arquivo.

Isto para não falar que os governos do PT, firmes como geleia, não conseguiram nem jamais conseguirão localizar os restos mortais dos companheiros executados no Araguaia.

A sentença da Corte Interamericana de DH neste sentido é de novembro de 2010 e até hoje não foi cumprida. Para resolver esta questão, talvez o único jeito seja recorrermos a um médium (rs)

Related Posts with Thumbnails