BAÚ DO CELSÃO: O 1º ARTIGO A GENTE NUNCA ESQUECE...

Foi em agosto de 1967, quando eu tinha 16 anos. Alguns meses antes conhecera a Maria das Graças, menina politizada, filha de um velho militante do PCB que precisou deixar a Bahia por causa do golpe de 1964.

Ela deu uma sacudida na minha vida. De repente, percebi que o sonho infantil de me tornar engenheiro químico nada tinha a ver com minhas inclinações e talentos, muito mais voltados para a área de humanidades. Resolvi, portanto, transferir-me da 2ª série do curso Científico do Colégio Estadual MMDC, no bairro paulistano do Mooca, para  o 2º Clássico. Exames de adaptação (que tirei de letra) e a boa vontade da diretora resolveram o problema.

Na minha nova classe fiquei conhecendo o Mário, colega que editava o jornal do grêmio estudantil, cujo escrúxulo nome era Theos (Deus, em grego). Conversa vai, conversa vem, acertei a publicação do artigo abaixo, certamente ingênuo, mas ousado nas circunstâncias. 

Nem de longe imaginava que era o primeiro de milhares que marcariam minha vida e minhas lutas. Mas, o Mário o encaixou inteirinho na capa e, mal aquela edição acabava de ser distribuída, convidou-me para assumir o Theos, já que ele estava sem tempo para a tarefa.

O certo é que  nunca mais eu deixaria de manejar a palavra escrita na defesa de meus ideais políticos. Tudo que veio depois foi só aprimoramento. O caminho já estava delineado neste artigo:   

QUEM TEM MEDO DO ESTUDANTE?

E veio o povo à praça, falando em Deus, Família e Liberdade, numa marcha que seria a única manifestação popular a marcar a tomada do poder supremo do País pelos revolucionários de 1º de abril.

E veio a Revolução. Com a proteção de Deus, o apoio da Família, falndo em Liberdade. Num instante de crise tomaram-se várias medidas extremadas, algumas extremadas demais, mas, e daí? Deus aplaudia, a Família assistia, a Liberdade... bem, que importa a Liberdade ante a onipotência do Divino e a tranqüilidade da Família?

E, verídica ou não a existência de elementos de esquerda na UNE e nos sindicatos, extinguiu-se o órgão de representação estudantil e "sanearam-se" as entidades de classe dos trabalhadores. Os órgãos de representação operária continuaram existindo, mudados foram alguns de seus dirigentes. O órgão de representação estudantil foi sumariamente extinto.

Viu-se, então, toda a classe estudantil, após a Revolução de 1º de abril, sem uma representação efetiva, que lhe defendesse os direitos e advogasse as reivindicações. E isto sob a égide de Deus, da Família e da Liberdade.

Mas, não se pode amordaçar o idealista, não se pode calar toda uma classe em nome de uma Liberdade que não inclui a violência, de um Deus que simboliza acima de tudo a justiça e de uma Família que saiu às ruas para defender seu direito constitucional de expressar a opinião.

 Sem outra arma que não a coragem e o apego às convicções, foi o estudante às ruas advogar os direitos que deveriam ser defendidos por uma representação legal da classe. E sangue jovem, sangue idealista, sangue de dignos descendentes de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo tingiu a calçada.

Eram os estudantes espancados e aprisionados em nome de uma justiça arbitrária, eram as palavras caladas pela força, era a batalha cruenta e desigual entre os argumentos e as agressões. Se Deus assistiu, não aprovou. A Família assistiu e chorou. A Liberdade não pôde assistir.

E quantas vezes saiu o estudante às ruas, em defesa de causas que eram suas e de sua classe, em todas ele foi agredido, pisoteado, amordaçado pelo direito da força, que substituiu a força do Direito, sem consentimento de Deus, sem a aprovação da Família, na ausência da Liberdade.

Mas, a violência só conseguiu solidificar ainda mais o ímpeto e decisão da classe estudantil, que continua a travar as batalhas de uma luta que só findará pela razão, que não será vencida nem pela força nem pela arbitrariedade, que proseguirá enquanto houver uma reivindicação a fazer, uma palavra a dizer, uma injustiça a reparar.

E, no instante em que o único órgão de representação estudantil, colocado na ilegalidade como que para comprovar ser o Direito cobertura legal para os interesses de grupos, tenta efetivar o seu 29º congresso, todo estudante tem compromisso firmado perante sua classe e perante si mesmo, de dar seu apoio, ainda que somente moral, a seus irmãos de ideais, que travam mais uma batalha de luta tão heróica quanto desigual.

E, aos que objetarem a respeito da legalidade ou não da UNE, cumpre dizer que uma entidade de classe é permanente, somente seus elementos são transitórios. Que, se elementos havia na UNE a abraçarem ideais esquerdistas, poderiam ser afastados tais elementos, mas nunca extinto o direito de representação da classe estudantil. E que, se a UNE não tem uma existência legal, tem-na real, até que seja substituída por qualquer entidade nacional que represente verdadeiramente os interesses dos estudantes, e não esteja colocada na ilegalidade.

E que Deus e a Família compreendam e aplaudam a luta do estudante em prol da Liberdade. Amém.