O magistral artigo de Celso da última quinta-feira sobre a primeira conquista brasileira da Copa do Mundo de Futebol me trouxe algumas reflexões sobre a condição psicossocial brasileira pois a dita conquista teria sido o primeiro grande evento de superação do chamado Complexo de Vira-latas que dominaria o povo brasileiro.
Sempre tive certa desconfiança sobre tal termo, pois minha impressão é de ele representar algo muito mais inoculado pela burguesia brasileira, ou seja, pela nossa elite, do que um processo orgânico do povo em geral. Não pretendo com isso atribuir ao povo a existência de um orgulho nacional, em oposição a um congênito sentimento de inferioridade presente entre as classes altas, mas é importante ressaltar que o imaginário de cada povo é de responsabilidade da burguesia nacional dominante e um país igual o Brasil sempre possuiu baixo índice de consciência nacionalista devido à formação subordinada e raquítica do próprio capitalismo por essas bandas.
É interessante observar que quem criou a expressão Complexo de Vira-Latas foi um escritor reacionário, embora talentoso, umbilicalmente ligado à elite carioca, Nelson Rodrigues. Esse era famoso por sua antipatia para com o povo brasileiro, no que apenas expressava o desgosto geral de sua classe. A derrota do selecionado nacional contra o Uruguay em 1950, no Maracanã, teria catalisado na mente do cronista a ideia para essa expressão.
Sinal de quão pouco nossa burguesia sempre almejou, pois precisava da vitória em um campeonato de futebol para impulsionar uma imagem de grandeza nacional frente a outros países, algo impossível de alcançar por meios econômicos e sociais. À época, os EUA comandavam o capitalismo, a URSS colocava o primeiro homem no espaço, a França havia dado os Direitos Humanos e até a Argentina era bem quista por seus filósofos e poetas, mas o Brasil seria campeão mundial de futebol.
A derrota para o Uruguay em 1950 levou Rodrigues a criar o termo Complexo de Vira-Latas |
Os primeiros vestígios do sentimento de inferioridade nacional começam a aparecer após a Independência e, sobretudo, nas décadas finais do reinado de Dom Pedro II. O próprio Imperador dava mostras desse sentimento em suas andanças pelo exterior, quando preferia acima de tudo se passar como simples indivíduo a soberano de um dos maiores países do mundo.
Os filhos da elite nacional, em sua maioria do Rio de Janeiro, iam para a Europa estudar e voltavam sem um pingo de desejo de continuar por aqui. Muitos começavam a fazer um trânsito constante entre a capital brasileira e as principais cidades europeias, sempre indo perder dinheiro e voltando para recuperar os valores e logo voltarem lá para perder de novo. Isso era tão comum que uma Ópera do período criou o personagem o brasileiro, sujeito ignóbil e que perdia seu dinheiro nos salões de Paris ou Milão, voltando à sua terra natal para enriquecer e retornar para mais uma rodada de perdas.
Na Europa e nos EUA, Dom Pedro II fazia questão de esquecer que era soberano de um país escravocrata. |
A dualidade entre a aspiração liberal e o escravismo concreto, com toda sua chaga de atraso e subdesenvolvimento, embutia na elite brasileira o sentimento de inferioridade diante de seus pares europeus. A situação, contudo, permanece após o fim da escravidão e o começo da República, pois o Brasil continuava sendo um país profundamente agrário e incapaz de ocupar qualquer posição de destaque em nível mundial.
Pior, pois os EUA já se mostravam à época como uma potência emergente, mesmo tendo um passado colonial semelhante ao brasileiro. Esse fato é constatado nas palavras de Monteiro Lobato que, após uma viagem à terra do tio Sam, voltou afirmando o inexorável subdesenvolvimento brasileiro e que aqui mais se parecia com a África. Embora alguns apressados vejam nessa frase uma conotação racista, na verdade o escritor queria se referir à condição de subdesenvolvimento econômico daquele continente, à época dominado pelas potências imperialistas da Europa.
Mesmo o início da industrialização, puxada pelos militares e por setores políticos de inspiração positivista, não mudou o sentimento de nossa burguesia. Isso porque o processo industrial não foi comandado por ela, mas aconteceu apesar dela, com o Estado e o capital estrangeiro na liderança. Por isso, inclusive, ao contrário de outros processos industriais em que as burguesias nacionais impuseram ao conjunto da população um ideário positivo, por aqui a burguesia continuou se portando negativamente frente ao país, cabendo antes ao Estado buscar conduzir as massas.
Para Lobato, o Brasil, comparado aos EUA, era uma "África". |
Daí a inelutável contradição do Estado entrando em todos os poros da economia e a burguesia clamando contra o intervencionismo estatal, pois ela não se via no progresso prometido pela propaganda do Brasil, país do futuro, aspirando antes a explorar agora as vantagens econômicas abertas no ciclo pós-Guerra. Dito de outra forma, a burguesia brasileira nunca encampou um ideal de elevar o Brasil a potência capitalista, ficando tranquilamente em sua condição subordinada e se contentando a fazer a ponte aérea com a Europa e os EUA para gastar sua fortuna.
Inferior e subordinada, vivendo em um país de parco desenvolvimento social e econômico, mas aspirando a ser vista de igual para igual pelas potências mundiais, a elite brasileira introjetou em si o complexo de vira-latas e tratou de irradiar isso para o conjunto do povo. Daí um cronista reacionário igual Nelson Rodrigues conseguir convencer de que a derrota na final de um campeonato era expressão de quanto o brasileiro se sentia desimportante. (por David Emanuel Coelho)
3 comentários:
David, só um pequeno adendo: em termos futebolísticos, a expressão "complexo de vira-lata" se deveu a que o Brasil vinha de goleadas acachapantes nas duas primeiras partidas do quadrangular final do Mundial de 1950, sobre a Suécia (7x1) e a temida "fúria" espanhola (6x1). Isto gerou uma desmedida euforia, o país inteiro acreditando no "já ganhou".
Então, a derrota diante do Uruguai (1x2), no Maracanã lotadíssimo e tendo a vantagem do empate, deixou a impressão de que a seleção, e o próprio Brasil, sempre negavam fogo nos momentos decisivos. um adversário até inferior, mas com pedigree (o Uruguai já havia conquistado a Copa de 1930), invariavelmente botaria o vira-lata pra correr.
Verdade, Celso, mas o termo acabou sendo generalizado para a conduta em geral do brasileiro. O próprio Nelson Rodrigues para isso contribuiu de forma significativa.
Sem dúvida. Eu apenas quis acrescentar uma informação que eu possuía porque meu pai falava sempre nisso. Realmente, depois das duas estrondosas goleadas anteriores, o maracanazo pareceu uma enorme pipocada.
E, como sempre, a corda arrebentou do lado mais fraco. O goleiro Barbosa foi hostilizado a vida inteira porque, como de um cruzamento do Ghiggia saiu o gol de empate do Uruguai, quando o ponta direita novamente parecia que ia centrar, ele se adiantou para tentar interceptar. Só que o Ghiggia percebeu e chutou direto entre ele e a trave, desempatando a partida.
Mas, o Ghiggia armava esses salseiros porque o seu marcador, o truculento lateral Bigode, foi instruído a não fazer faltas violentas porque "o mundo inteiro estaria vendo". Resultado: ele levou um baile, dos pés do Ghiggia saíram os dois gols uruguaios e o cartola que mandou aquele jogador grosso manter fechada a caixa de ferramentas não foi responsabilizado por nada.
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