Quando a internet surgiu, sua promessa era ser um espaço livre e de potente cooperação entre indivíduos espalhados pelo planeta. Praticamente não haviam grandes corporações no ciberespaço e todo tipo de empreendimento era feito de forma colaborativa e sem fins lucrativos. A própria ideia da internet afirmava essa sua natureza, pois constituída pela conexão em rede de milhões de computadores, majoritariamente domésticos, formando um sistema descentralizado. Era quase uma antecipação da sociedade comunista, com produtores livres e associados, mesmo que apenas de forma virtual.
No entanto, a sociedade onde vivemos é a capitalista e não demoraria muito para o capital se imiscuir também na internet, a transformando de um espaço livre e colaborativo em uma instância controlada por grandes corporações em busca de alavancar ganhos. No começo, muitas dessas corporações ainda se apresentavam enquanto organizações abertas, buscando facilitar o trabalho colaborativo a nível mundial. A Google, por exemplo, surgiu enquanto um simples indexador da rede mundial, trabalhando em paralelo e complementarmente aos demais usuários.
Contudo, a internet começou a se disseminar na vida social e passou a ser ferramenta fundamental para o capitalismo em sua fase toyotista. Compras online baratearam os custos, pagamentos instantâneos facilitaram as transações e possibilitaram aos bancos economia com o atendimento presencial, a comunicação expressa por email e depois por aplicativos aproximou os indivíduos, integrando mais eficazmente os sistemas produtivo e comercial e, por fim, uma sociedade mais isolada e com menos tempo livre, fez disparar a interação virtual, criando espaço para as famigeradas redes sociais.
Ele é a própria fake news, mas não inventou esse modo de manipulação... |
Assim, as corporações se transformaram de vez em companhias plenamente capitalistas, sem máscara alguma. Do passado colaborativo ficou apenas a lógica de se apoderar do que é produzido, postado e publicado pelos usuários, pois são eles que alimentam o circuito da internet com textos, fotos, vídeos e interações. Obviamente, a internet ainda continua sendo um espaço mais democrático e amplo que as tradicionais formas de comunicação, tais como jornais, rádio e TV, pois aqui há lugar inclusive para um blog revolucionário e sem subvenções igual ao Náufrago, algo praticamente impossível nos formatos tradicionais.
Contudo, neste blog também estamos submetidos à lógica corporativa das Big Tech e, por exemplo, para sermos mais lidos, chegando a um número maior de leitores fora da nossa bolha corriqueira, precisamos pagar ao Facebook para postar anúncios. O mesmo se aplica ao Google, pois caso queiramos ter maior impacto nas pesquisas do site, temos a opção de desembolsar alguns reais para irmos para o início das pesquisas.
À medida em que o mundo concreto, cotidiano, e o virtual foram se fundindo, muitos dos problemas vividos na realidade de carne e osso foram indo para os ambientes online. Não poderia ser diferente, a internet é feita por pessoas, dentro da lógica social capitalista, e os elementos existentes em sua dinâmica expressam os elementos existentes na própria sociedade em geral. Assim, o nazifascismo e os crimes de ódio não foram inventados pela internet, mas já existiam há mais de século. Mesma coisa sobre as fake news, já usadas antes por Hitler e até mesmo alguns séculos atrás.
Basta, por exemplo, considerar como o filme O Amante da Rainha (2012), que pode ser visto na janela ao final do artigo, retrata como a reação feudal usou mentiras divulgadas em jornais, novidade à época, para combater as reformas liberalizantes do rei Cristiano VII, na Dinamarca do século 18. Manipular a opinião pública, mentir e distorcer são ferramentas usadas pelos reacionários ao longo da história porque a verdade é contrária aos interesses deles, só lhes restando, portanto, mistificar para manter seu domínio opressivo.
... antes, outros já tinham usado expediente parecido para chegar ao poder. |
Não seria diferente hoje. O grande ponto é que a internet possui um meio de difusão muito mais impactante e acelerado do que qualquer meio de comunicação anterior na história humana. Em segundos, uma fake news pode alcançar milhões de pessoas. Mais importante que pensar no meio de difusão da mentira é entender porquê, afinal, as pessoas acreditam nelas. A resposta só pode ser uma pré-disposição social para isso.
Considerado isso, o PL 2630, conhecido por PL das Fake News, é uma monstruosidade que em nada ajuda ao Brasil. Pelo contrário, pode atrapalhar enormemente a livre circulação de ideias na internet, pois tenta instituir a censura de conteúdo, abrindo caminho para a perseguição a produções legítimas, que poderiam vir a ser caracterizadas como sendo conteúdo enganador. O motivo disso é simples e passa por um problema conceitual: o que é uma fake news? Pela letra da lei proposta, fake news será o que um conselho público decidir que o seja, ou o que as corporações considerarem como tal.
No entanto, a composição de conselhos varia ao longo do tempo e hoje podem ser indivíduos isentos e sinceramente interessados no bem estar da coletividade, mas amanhã podem ser pastores, ruralistas, garimpeiros ou outros bolsonaristas. A noção de fake news certamente não será mais a mesma. Esse é o grande perigo de transformar o Estado em juiz do que é a verdade, pois os interesses políticos são mutáveis e um dia a faca da censura pode se voltar contra quem censurava.
Apesar de suas limitações, a internet ainda é mais livre e pluralista que a mídia tradicional. |
O mesmo podemos dizer sobre as corporações. Hoje já não é raro elas fazerem vista grossa a conteúdos de extrema-direita, enquanto são rigorosas com conteúdos mais contestatórios e à esquerda. O que não poderiam fazer tendo uma base jurídica as ancorando?
Muito pior é desconsiderar a raiz social da manipulação levada a cabo pelos mistificadores. Desconsidera-se o apodrecimento da sociedade capitalista, a falência da autoridade dos meios tradicionais de saber - imprensa, universidades, poderes da República -, tragados que foram pelo capital, e se coloca a solução em simples processos regulatórios, como se a dinâmica econômica e social pudesse ser contida com leis. É mais uma vez a ilusão do voluntarismo político, já denunciada por Marx, de que o poder administrativo do Estado pode conter a entropia do capitalismo.
Assim, de novo, o lulopetismo presta um desserviço ao país e à esquerda, criando um mecanismo que, além de inútil para cercear a manipulação nos meios digitais, poderá ser usado contra a própria esquerda em um processo de sufocamento ao ambiente relativamente livre da internet. Como sempre, optam por este caminho repressivo para não enfrentar de frente o poderio das grandes corporações ou desmontar a estrutura social e econômica viabilizadora da extrema-direita.
E assim, Lula 3 vai melancolicamente caminhando para o desastre. (por David Emanuel Coelho)
Um comentário:
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O mito da caverna,de Platão, e as Fake News compartilham muitas semelhanças, embora tenham sido criadas em épocas muito diferentes.
Assim, Platão descreve pessoas que estão acorrentadas em uma caverna e só conseguem ver sombras projetadas na parede. Eles acreditam que essas sombras são a realidade, porque nunca foram expostos à luz do sol que ilumina o mundo exterior. Quando um prisioneiro é libertado e vê a luz pela primeira vez, ele percebe que o que pensava ser realidade era apenas uma ilusão.
Da mesma forma, as Fake News são criadas para parecerem verdadeiras e muitas pessoas acreditam nelas sem questionar sua veracidade. Como as pessoas acorrentadas na caverna, muitas vezes somos limitados pelo que vemos e ouvimos em nossas bolhas de informação e só somos expostos a certas fontes de notícias. Quando as notícias falsas são divulgadas por essas fontes, elas se espalham rapidamente e são aceitas como verdadeiras sem uma investigação aprofundada.
Além disso, assim como o prisioneiro que foi libertado e precisou se adaptar a um mundo completamente diferente do que ele conhecia, aqueles que são expostos à verdade depois de acreditar em uma Fake News também podem ter dificuldade em aceitá-la e podem negar sua validade ou se sentir enganados.
Por fim, assim como Platão acreditava que a filosofia era a chave para a libertação das sombras da ignorância, a educação e o pensamento crítico são fundamentais para combater as Fake News. Precisamos estar dispostos a questionar as informações que recebemos e procurar fontes confiáveis para confirmar a veracidade das notícias que lemos e compartilhamos. Somente então podemos esperar sair da "caverna" das notícias falsas e chegar à luz da verdade.
Seu texto cumpre este papel.
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