A Pré-história da Guerra da Ucrânia
A guerra não é simplesmente a continuidade da política, ela é a continuidade da economia. E a guerra mundial é o ápice do processo capitalista de reprodução do valor em escala planetária.Quando se completa um ano da Guerra da Ucrânia, é preciso estar com esta ideia em mente, pois o que assistimos neste período é mais um capítulo no aprofundamento da crise global de acumulação do capitalismo, crise cada vez mais transmutada e escoada para o terreno bélico, primeiro através de guerras civis, internas aos países, e logo em guerras entre vizinhos e, por fim, em choques entre potências mundiais.
O motivo não é difícil de entender. A guerra é o momento em que o processo de destruição e reconstrução capitalista atinge seu ápice. Trilhões em mercadorias são obliteradas, milhões de pessoas morrem, ao mesmo tempo em que se coloca em marcha poderosa estrutura produtiva irrigada com dinheiro público abundante e mão de obra quase escrava. No regime da guerra não existe lugar para greves, limites da jornada de trabalho, férias ou qualquer outro benefício trabalhista, pois os trabalhadores são postos sob lei marcial e quando não enviados para morrer nos campos de batalha, devem alimentar o esforço bélico em casa.
Até então o conflito mais devastador da história, a Primeira Guerra Mundial foi um choque entre potências imperialistas... |
No entanto, este sopro de valorização do capital começou a enfraquecer na década de 1970 e, desde então, o capitalismo mundial derrapa. A fase neoliberal foi um esforço para colocar sangue novo em circulação nas esclerosadas veias do sistema, desmontando o Estado de Bem Estar Social montado no imediato pós-guerra e forçando novo salto na globalização.
Não nos enganemos, a globalização existe desde o Renascimento, quando mercadores se lançaram aos mares em busca de novas rotas de comércio e novos fornecedores de matérias-primas. A partir daí, cada nova fase do capitalismo era alcançada com nova etapa do processo globalizador, forçando a entrada no circuito do capital de povos inteiros e de lugares os mais distantes e ermos imagináveis. A Segunda Grande Guerra foi o término do maior processo globalizante a ocorrer depois das Navegações, processo conhecido como Imperialismo - ou neocolonialismo - e que marcou a subjugação da África e da Ásia pela Europa e pelos EUA.
Este conflito foi continuidade da Primeira Guerra e está dentro do processo de disputa entre burguesias nacionais pelo controle de mercados e fontes de matéria-prima. A diferença cabal entre entre o primeiro grande conflito e o segundo é que em 1939 as burguesias do mundo estavam diante de um abismo crescente cujo rosto mais familiar era o da revolução soviética. Portanto, não se tratava apenas de um crash interior à classe capitalista, mas de uma guerra de classes universal contra os trabalhadores sublevados.
... com desdobramentos na Segunda Guerra, esta já em um contexto de contrarrevolução global. |
Os regimes fascistas eram, ao mesmo tempo, organizações imperialistas e contrarrevolucionárias. Na realidade, o imperialismo era o meio próprio para a contrarrevolução, pois a luta de classes era exportada e o proletário era enviado para morrer nos campos de batalha do exterior, aliviando a pressão social interna em seus países de origem. Além do fascismo, outras formas de regimes autocráticos apareciam ao redor do planeta para atender ao mesmo objetivo. O estalinismo na União Soviética e o roselveltismo nos EUA são exemplos disso, modulando suas expressões políticas entre a aparência de ser um governo proletário e a aparência de ser um governo democrático.
O abismo revolucionário foi contido com a guerra e, ao menos no centro capitalista, a paz entre as classes pode reinar com relativa predominância desde então. Na realidade, o grande segredo dos anos dourados do pós-guerra não foi apenas o grande esforço de reconstruir a Europa e a Ásia, mas também o da exportação das contradições mais agudas do capitalismo para a periferia, notadamente para a América Latina, tornando o centro altamente estável e próspero, enquanto nossa região era assolada por pesada contrarrevolução, com dezenas de ditaduras brotando por vários países.
Não sendo burguesias imperialistas - mas ao contrário, caudatárias dos capitalistas europeus e estadunidenses -, as latinoamericanas não poderiam lançar mão de guerras externas para aliviar as contradições domésticas, daí tendo de efetuar drástica guerra interna contra os trabalhadores ao mesmo tempo em que forçava, por meio do endividamento público, o crescimento econômico, desinflacionando as tensões políticas através da cooptação dos trabalhadores e conseguindo, assim, isolar os agrupamentos revolucionários. A mistura de crescimento e repressão durou porém pouco tempo, com os regimes ditatoriais fazendo água por toda parte.
A derrocada das ditaduras nas décadas de 1980-90 também significou o colapso econômico dos países destas regiões, com o capital migrando para a Ásia, região cuja estabilidade política era alcançada na época graças a ferrenhos regimes ditatoriais de ascendência estalinista e após anos de luta anticolonial. Pois é, o capital não gosta de democracia... Para a América Latina restou a estagnação econômica e um clima de permanente instabilidade, controlado apenas por programas sociais e pelos curtos períodos de valorização das comodities.
Na fase neoliberal, contudo, as contradições antes exportadas para a periferia começaram a gradualmente retornar para o centro do capitalismo. A pobreza e a precariedade começaram a crescer, pioradas com o afluxo de imigrantes fugidos da periferia. Quando a crise de 2008 explode, seus efeitos entre as populações dos países centrais são imensos, com milhões perdendo casas e passando a viver em subempregos sem qualquer perspectiva de futuro.
Em resposta à situação vivida, o povo trabalhador começou a retomar ações contestatórias e em pouco tempo, eclodiram movimentos na Europa e nos EUA, sendo os mais famosos o Occupy Wall Street e os Indignados. A luta de classes estava de volta à agenda e os burgueses destes países começavam a se ver novamente na mesma condição de seus avôs, encarando o abismo.
No mundo árabe, surgiu a Primavera Árabe, um conjunto de rebeliões populares que se espraiaram do norte da África até o Oriente Médio. Embora tenha ocorrido no geral com o mínimo de confrontação, a Primavera também conduziu à guerras, sendo as mais drásticas as guerras da Síria e da Líbia.
A guerra da Síria, desdobramento da Primavera Árabe, foi o primeiro grande choque entre as potências militares atuais. |
Mas Putin não demoraria a levar o troco, pois não muito longe de Moscou aconteceria outro movimento impulsionado pela crise de 2008, a insurreição ucraniana, responsável pela derrubada do então presidente Viktor Ianukovytch, após este ter rejeitado uma aproximação do país com a União Europeia e ter se recolocado na órbita de Moscou. (por David Emanuel Coelho. continua aqui)
Um comentário:
Excelente texto. O capitalismo é uma máquina de moer gente.
O capitalismo é a matrix :
https://youtu.be/Nqgc-UgpEww
https://youtu.be/jMk673yHrJE
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