sábado, 25 de fevereiro de 2023

UM ANO DA GUERRA DA UCRÂNIA. CAMINHA O MUNDO PARA UMA TERCEIRA GRANDE GUERRA MUNDIAL? -2

Da Ucrânia ao Abismo

(continuação deste texto)

 
É importante considerar que a Ucrânia, assim como a maioria dos países do leste europeu, não é e nunca foi uma democracia plena. Após a queda da URSS, suas antigas repúblicas passaram a ser controladas por oligarcas governando democracias de fachada ou pura e simples ditaduras. Alguns países chegam a ter eleições e até alternância relativa do poder, mas a liberdade e a autonomia populares são extremamente limitadas.

À exemplo do ocorrido na Síria, os movimentos de 2014 levaram a uma guerra civil no leste da Ucrânia, marcadamente entre províncias ali localizadas e o novo poder central de Kiev, pois estas regiões do leste ucraniano são majoritariamente formadas por etnias russas e que não aceitaram a derrubada do presidente Ianukovytch, cuja base política estava justamente lá. 

Na realidade, a Ucrânia só existe enquanto país independente há 32 anos, pois, lembremos, era anteriormente parte da URSS e antes disso do Império Russo, portanto há em seu interior um complexo problema cultural e étnico que é ocultado pela mídia tradicional, pois os povos da etnia russa não se reconhecem por completo nos esforços ocidentalizantes de Kiev, preferindo manter laços mais profundos com Moscou. 

O levante ucraniano de 2014 está na raiz da 
atual guerra. Sua base era a insatisfação popular
com o governo de Ianukovytch. A extrema-direita
acabou comandando o processo.

Esquece-se do quanto o problema étnico é difícil na Europa, particularmente no leste. Na Espanha, por exemplo, durante décadas existiu a luta de grupos minoritários pela independência de seus territórios da dominação de Madrid, sendo a mais notória a luta dos Bascos. Na antiga Iugoslávia, as tensões étnicas terminaram de modo trágico com a guerra civil e a crise do Kosovo. Mesmo no Reino Unido existem tensões seculares dos irlandeses e mesmo dos escoceses contra a dominação londrina. 

Isso acontece porque a formação dos Estados Nacionais europeus passou por cima de particularidades locais. Povos que muitas vezes possuíam ascendência milenares tiveram de abandonar seus costumes e línguas em nome da dominação das recém instauradas monarquias europeias. Nas épocas de crise, voltam-se a se acirrar os conflitos étnicos.

Diferente de outros lugares da Europa, contudo, na Ucrânia não houve concessão de autonomia aos grupos minoritários russos, muito por pressão de grupos de extrema-direita, que ascenderam ao poder após os movimentos de 2014, e cujo mais notório é o Batalhão Azov, força paramilitar neonazista que luta contra o separatismo do leste ucraniano desde aquela época. Tais forças foram inclusive determinantes no fracasso do Acordo de Minsk, tratado responsável por colocar fim ao primeiro período do conflito e que deveria conceder maior liberdade aos grupos étnicos russos. As forças de extrema-direita nunca aceitaram sua implementação e menos ainda o cessar fogo dele decorrente, fazendo com que de fato a guerra civil nunca tenha terminado na Ucrânia. 

O Batalhão Azov é acusado de ter cometido
inúmeras atrocidades contra minorias étnicas. 
Antes da Guerra, UE e EUA o consideravam 
como uma organização extremista.
 

De fato, a situação destes grupos é dramática, sofrendo com violências de todo tipo a partir da ação da extrema-direita e do governo ucraniano. A própria língua russa chegou a ser proibida de ser ensinada pelo governo de Kiev, atendendo a demanda dos neofascistas, e ações de limpeza étnica não eram incomuns. Mas, por questões políticas, os olhos ocidentais não estavam abertos para esses crimes. 

Já os rumos da insurreição de 2014 não eram também dos melhores, pois a Ucrânia não apenas tinha afundado na guerra, mas tão pouco havia se avançado na melhoria das drásticas condições do povo. A entrada na UE tinha sido mera promessa vazia. 

Desiludida com os rumos do movimento de 2014, a população ucraniana elege um comediante famoso por ter interpretado uma série onde representava um presidente combatendo o sistema. A cena mais famosa de O Servo do Povo é quando, ao estilo Rambo, o tal presidente fuzila parlamentares em uma sessão do Congresso. Volodymyr Zelensky lançou-se enquanto outsider, portanto, bancado pela extrema-direita e pelos oligarcas da Ucrânia. 

Durante parte de seu mandato, Zelensky tentou estabelecer uma relação cordial com Putin, seguindo nisso diretrizes de Trump, chegando mesmo a desagradar a extrema-direita por sua tentativa de conciliar com Moscou na questão das minorias étnicas. No entanto, com a posse de Biden, a situação muda. 

Em O Servo do Povo, Zelensky interpreta um 
presidente que combate a corrupção da classe
política da Ucrânia. Em sua cena mais
 famosa, ele fuzila deputados no Congresso. 

O antagonismo do atual presidente dos EUA com Putin possui origem no governo Obama, quando a Rússia foi acusada de espionar o Partido Democrata e liberar para o Wikileaks informações confidenciais das atividades de Hillary Clinton, então Secretaria de Estado. Chelsea Manning, por exemplo, foi preso sobre, entre outras coisas, a acusação de ser um espião russo

Na realidade, no Partido Democrata, o principal da atividade do Wikileaks é creditado à espionagem de Putin. Até mesmo a derrota para Trump em 2016 é creditada a uma suposta interferência do presidente russo naquelas eleições através de subvenções ao Partido Republicano e manipulação popular por Fake News

De fato, não é segredo a íntima conexão entre Putin e a extrema-direita global. Se antes Moscou era o centro irradiador das ações das esquerdas mundiais, atualmente a cidade se tornou o centro para todas as forças neofascistas e reacionárias, sendo o presidente russo modelo pessoal para a maioria dos líderes direitistas. Por isso seu discurso francamente fascistóide, o mesmo ouvido na boca de um Bolsonaro, de um Erdogan ou de um Viktor Orban, pois todos eles bebem nas águas putinistas. 

Longe, no entanto, de ser Biden um campeão da democracia e da liberdade. O que o move é algo muito menos nobre e mais comezinho. Ao combater a influência de Putin, o presidente dos EUA não apenas enfraquece a própria extrema-direita doméstica estadunidense, sendo este o mesmo motivo de seu apoio a Lula no Brasil, mas também consegue aliviar a tensão doméstica em seu próprio país.  

Após o fiasco de sua agenda doméstica e o 
vexame na saída do Afeganistão, Biden
passou a concentrar seus esforços na guerra da
Ucrânia.
 

Por isso, Biden fez de tudo para não existir saída diplomática para a crise da Ucrânia, quase festejando a invasão daquele país pelas tropas russas. Quando a guerra estourou, estava claro que Kiev só resistiria com ajuda estadunidense, ou seja, a Ucrânia precisaria comprar maciçamente armamentos dos EUA, através de empréstimos feitos pelos próprios estadunidenses. Um cenário de completo ganho para o governo Biden, pois a indústria armamentista dos Estados Unidos decolaria sua produção, o governo ucraniano ficaria em débito eterno e o ocupante da Casa Branca não precisaria passar pelo desgaste de enviar um só soldado para morrer no campo de batalha. Por isso, para Joe Biden a guerra da Ucrânia deve se estender o máximo possível. Quanto mais a guerra durar, melhor!

Em paralelo, ele também passou a pressionar seus vassalos europeus a igualmente aumentarem seus gastos militares, o que significa, obviamente, ainda mais vendas, pois nenhum país da Europa possui a capacidade de produzir armamentos vista do outro lado do Atlântico. O renascimento do militarismo na Europa, sob o guarda-chuva dos EUA, é garantia de lucro duradouro para a indústria estadunidense.

Conjuntamente vieram as sanções, cujo efeito na economia russa é quase nulo, o mesmo não se podendo dizer de seu efeito na Europa, onde o custo de vida explodiu com o embargo ao gás e ao petróleo da Rússia. Novamente, os EUA saíram ganhando, pois são fornecedores e intermediários estadunidenses os substitutos dos russos, levando combustíveis do próprio continente americano ou do Oriente Médio. Pior, pois por um complexo processo de circunscrição e desvios, o combustível vendido pelos estadunidenses muitas vezes é o mesmo saído do território russo, mas chegando ao continente europeu a um preço muito mais elevado. 

Submissa aos EUA, a Europa aceita pagar a
conta da guerra com inflação e instabilidade.
 
Por fim, Biden conseguiu apertar ainda mais o cerco à fragilíssima União Europeia, impondo maior submissão e fincando bandeira no terreno estratégico do leste europeu, a meio caminho da Ásia menor e do sempre importante Mar Negro. Lembram da Síria? Entre este país e o porto ucraniano de Odessa são apenas 1400 km. A título de comparação, entre Belo Horizonte e Salvador são 1200 km. Portanto, aquela região da Europa é geopoliticamente vital. 

Por isso, Putin tão pouco quer perde-la. As ações contra as etnias do leste da Ucrânia de fato serviram enquanto álibi para a invasão, mas é enganoso que o plano dele fosse dominar completamente o país vizinho. Basta rever seu discurso à época do início da guerra para entender claramente o que ele iria fazer e vem de fato fazendo. 

Em primeiro lugar, seu objetivo era anexar o leste da Ucrânia, justamente onde há a etnia russa. Com isso, seriam dominadas também as regiões próximas ao Mar Negro e seus portos estratégicos, sendo o mais crucial o já citado Odessa. A Criméia, anexada em 2014, voltaria deste modo a integrar por completo o território russo. Esta parte tem tido relativo sucesso, com as forças russas dominando a maior parte dessa área. 

Em segundo lugar, o governo de  Zelensky seria derrubado por pressão popular e  pelo próprio exército ucraniano, diante da enorme ofensiva russa e da possível agitação social daí surgida. O maciço apoio ocidental, contudo, freou isto, ao menos por enquanto. 

Governando a Rússia há 23 anos e formado na 
KGB, Putin não pode ser subestimado em suas
estratégias

De qualquer forma, não é possível considerar que Putin objetive ser um novo Hitler ou um novo Napoleão, invadindo países em série. Na realidade, antes da guerra  explodir, a Europa vivia em completa harmonia com o regime putinista, como provam os inúmeros negócios dos oligarcas russos no mundo dos esportes e no setor imobiliário. Havia, por exemplo, mais bilionários da Rússia morando em Londres que na própria Moscou. Na verdade, o rompimento só aconteceu por imposição de Biden, do contrário a própria Ucrânia ficaria à própria sorte, pois mesmo um bobão igual Boris Johson, que hoje diz ter sido ameaçado por Putin em uma conversa, antes era o maior fã do líder russo. 

Ao mover sua máquina de guerra, Putin também exporta suas contradições domésticas para o exterior, embora em um nível muito inferior ao dos EUA. A mobilização de guerra é o motivo adequado para controlar qualquer dissensão interna, além de efetivamente impulsionar a economia nacional, elemento aprimorado ainda mais com as sanções e a consequente saída do capital estrangeiro do controle de empresas locais, ampliando a nacionalização econômica. 

Enquanto a crise na Ucrânia se desenrola, novo cenário vai surgindo em Taiwan, desta vez prenunciando um enfrentamento dos EUA com a China. O gigante asiático sofre com uma profunda desaceleração de seu outrora titânico crescimento econômico e uma crise imobiliária ronda cada esquina. Igual a seus sócios estadunidenses, europeus e russos, a burguesia chinesa, congregada no Partido Comunista - que de comunista só tem o nome - avalia mecanismos de aliviar a futura eclosão social cujas consequências seriam incalculáveis em um país de mais de um bilhão de seres humanos. 

Nisto não podemos esquecer, Taiwan é resquício da guerra civil chinesa, quando os antigos dirigentes da China fugiram e se estabeleceram na pequena ilha. Desde então, o governo de Pequim reivindica sua soberania, formalmente reconhecida pelos EUA e pelo resto do planeta desde a década de 1970, mas de fato negada pelas potências ocidentais. 

Taiwan é outro centro de tensões globais, 
desta vez com a China. 

O atual conflito na Ucrânia, portanto, pode ser mais uma etapa de uma mobilização a nível mundial promovida pelos capitalistas para salvar seu próprio sistema da bancarrota. Por onde se olha, os sinais de uma possível guerra mundial vão sendo vistos, com a crescente divisão global e o rearmamento dos países.

 Antes na Síria e agora mais claramente na Ucrânia, as grandes potências vão se testando, crescendo e radicalizando em suas ações bélicas, se preparando para um conflito aberto. São sinais disso até  o ressurgimento do clima de xenofobia e intolerância nacional, só vistos nos períodos anteriores às duas Guerras Mundiais e agora visíveis na russofobia abertamente incentivada pelos meios de comunicação ocidentais. 

O caminho da guerra é ritmado pela dinâmica da crise capitalista. Quanto mais ela se aprofundar e se tornar catastrófica, mais os capitalistas ao redor do mundo empurrarão o planeta para o conflito generalizado. Nem o prenúncio de um cataclisma nuclear parece deixa-los menos resolutos em suas ações, pois, do alto de sua soberba, acreditam fielmente que sobreviverão ao apocalipse.


Diante deste cenário, nossa posição deve ser a mesma que as dos revolucionários do período da Primeira Guerra: rejeitar a guerra e não participar de seus esforços. Deve haver paz entre os povos e a única guerra a ser travada deve ser a contra o capitalismo e seu sistema desumano, venha este estampado com o rosto de Biden ou de Putin (por David Emanuel Coelho



3 comentários:

Túlio disse...

https://youtu.be/0PvcdU3L8r0

SF disse...

Gratidão por trazer tantas informações e análises.
É um novo tempo mesmo.

Anônimo disse...

Desculpem se estou aborrecendo...

O destino da Ucrânia determinará a autoridade do Ocidente no mundo The Economist

https://www-economist-com.translate.goog/briefing/2023/02/18/ukraines-fate-will-determine-the-wests-authority-in-the-world?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt

O Ocidente está lutando para forjar um novo arsenal de democracia The Economist

https://www-economist-com.translate.goog/briefing/2023/02/19/the-west-is-struggling-to-forge-a-new-arsenal-of-democracy?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt

Kiev, um ano depois: 'Vejo a guerra ontem e amanhã' | Financial Times

https://www-ft-com.translate.goog/content/c4f92c6d-a309-4e0a-ae24-1b0dba84b861?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt

++

https://www-economist-com.translate.goog/ukraine-crisis?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=es&_x_tr_hl=es

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