terça-feira, 31 de janeiro de 2023

DALTON ROSADO RELEMBRA SUA EXPERIÊNCIA DA FINAL DA COPA DE 1970

Reminiscências de um septuagenário

 Para anuviar a mente, compartilho com os leitores algumas experiências pessoais da juventude capazes de demonstrar que os articulistas nem sempre são tão sisudos como parecem ser.

Resolvi contar um causo vivido por mim há 52 anos e do qual me lembrei agora, às vésperas dos meus 73, ocorrido quando assistia pela televisão ao jogo entre Brasil e Itália na final da Copa do Mundo de 1970,  disputada no Estádio Azteca, no México, e que retrata bem o espírito daquele tempo

O Brasil vinha fazendo uma campanha glamourosa e havia uma expectativa de podermos conquistar o tricampeonato mundial e ficar definitivamente com a Taça Jules Rimet, pois o regulamento determinava sua posse permanente a quem alcançasse primeiro a contagem tripla de conquistas. 

 Estava eu na altura a cursar o primeiro ano da Faculdade de Direito em Fortaleza ao final do primeiro semestre letivo, com 20 anos de idade, quando um amigo de turma ricaço me convidou para assistir ao jogo em sua casa.  

Havia a novidade da transmissão ao vivo e com imagens coloridas pela televisão. Certamente, ele possuía tal equipamento em casa, o que criou em mim a presunção de um cenário perfeito. Tudo se confirmou como eu previra, até para melhor. 

A seleção contava com a plenitude do amadurecimento de um Pelé, aos 29 anos, e com craques do calibre de Tostão, do Cruzeiro, Gerson e Jairzinho, do meu Botafogo, Rivelino, do Corinthians, Carlos Alberto Torres e Clodoaldo, do Santos, para citar apenas os seis mais destacados de um time considerado um dos melhores de todas as copas.  

Aluno pobre de Universidade Pública - a quem devo a possibilidade de me tornar bacharel em direito e advogado - morando em república estudantil, comendo em restaurante universitário, recém-chegado à cidade grande e vindo do interior, eu era o personagem típico da música que ouvira Belchior cantar ainda na cantina intitulada apenas um rapaz latino-americano.  

De antemão sabia que iria assistir ao jogo num ambiente confortável - bem diferente daquele onde futuros companheiros meus estavam então sendo torturados, mortos ou apenas sobrevivendo -, mas somente pude provar, e dimensionar, os confortos tradicionais da alta burguesia nacional naquele ambiente. 

Antes do início da partida, serviram uns canapés aos convidados, com uísque escocês da melhor qualidade. Eu, que vinha tomando apenas cachaça e cerveja pagas pela generosidade de colegas, não me fiz de rogado: comi bem e tomei todas.  

Antes mesmo do jogo começar, observei uma especial atenção da dona da casa, mãe do meu colega, em me servir tudo com a presteza e atenção de quem quer agradar especialmente um convidado. Atribui, inicialmente, tal gesto, à decantada hospitalidade cearense, que realmente existe, embora esteja agora menos constante por imposição do individualismo capitalista. 

Mas fiquei de certa forma a me perguntar o porquê daquela senhora me apresentar sua bela filha com ares de cupido. Em verdade, a moça não me deu muita bola, mas notei da parte da mãe certo desgosto pela indiferença dela em relação à minha pessoa.     

Começou o Jogo e a Itália jogava bem, mas o Brasil equilibrava a partida com finalizações do Riva deles e do Riva nosso. Mas logo aos 17 minutos, Tostão bateu rápido a lateral - sem esperar pelo gauchão Everaldo - para Rivelino, que de canhota, e sem olhar, despachou de pronto a bola para a área pelo alto que encontrou Pelé para o cabeceio numa altura possível apenas a ele saltar, apesar de sua estatura mediana e diante dos zagueiros altos da Itália. Jogada possível apenas graças ao fato da seleção ser maravilhosamente entrosada, como convém aos craques excepcionais. 

Gol do Brasil, e agora Pelé era goleador em duas finais de copa do mundo, feito já ali irreversivelmente consignado na história do futebol, como tantos outros recordes alcançados apenas por Pelé, os quais vão perdurar por muito tempo, ou talvez pela eternidade.  

A esta altura, eu já havia tomado umas três doses do scotch e a alegria de todos era contagiante. Parecia estar a vitória perto, com a Itália um pouco atordoada com o gol.  

Aí veio a ducha de água fria: aos 37 minutos, uma bola tocada por Brito chegou ao bom volante Clodoaldo que quis sair jogando de calcanhar para Everaldo, sem vê-lo, e possibilitou a Boninsegna roubar a bola e, diante do desespero de Brito e Félix - que saiu mal do gol -, tocou para o gol aberto. Um empate inesperado.  

O Brasil ainda teve um gol de Pelé anulado ao final do primeiro tempo da partida. Consta de depoimento de Carlos Alberto, e confirmado por outros jogadores, que Pelé rodou a baiana no vestiário, irritado com a pexotada de Clodoaldo, Brito e Felix, e com a anulação do gol dele pelo juiz. 

A torcida naquela casa continuava confiante, e eu acho que o uísque generoso e de boa qualidade, junto com um almoço regado a camarão e lagostas, ajudava a conter a ansiedade.  


As atenções da dona da casa à minha pessoa se somaram às atenções do seu marido que corroborava toda aquela hospitalidade e deferência que eu recebia, mesmo sem achar eu merecedor de tantos encômios.  

O Brasil voltou para o segundo tempo mais desenvolto. Logo nos primeiros minutos, Carlos Alberto fez tabela com Jairzinho e cruzou para Pelé quase alcançar a bola para marcar o segundo gol. Houve um UHHHH dos presentes.  

Rivelino acertou a trave num chute de direita, seu pé bom, mas não tanto como a patada atômica de canhota. Em outro chute, o garoto do parque quase marca, obrigando o goleiro Albertosi a uma grande defesa. O Brasil prometia.  

Aos 20 minutos, veio o alívio com Gerson dominando uma sobra de bola de Jairzinho, e, de fora da área acertando o gol com sua canhotinha de ouro. Assim fez o seu primeiro, único e mais importante gol na copa do mundo: Brasil 2 a 1, um resultado que fazia justiça ao melhor jogo do Brasil. 

Gerson ergue as mãos para os Céus e enxuga as lágrimas no México e nós levantamos os copos em Fortaleza num bride à felicidade.  

Com Gérson iluminado e confiante, o Brasil se aproveitou do desencontro italiano e, cinco minutos após, Gerson faz um lançamento longo, mas preciso, para encontrar a cabeça de Pelé que, diante da marcação italiana, apenas tirou dos defensores para achar Jairzinho bem colocado, o qual entrou com bola e tudo, sem humildade, no gol, parafraseando a música de Jorge Ben Jor de modo diferente. Na grandeza desta jogada, é preciso ressaltar a habilidade de Pelé no cabeceio, pois nenhum dos grandes jogadores do futebol mundial, de ontem e de hoje, cabeceavam/cabeceiam tão bem e saltavam/saltam tão alto quanto ele. 

Daí pra frente já era carnaval. Com três a um no placar, e a Itália batida, havia uma mistura de emoção e confirmação presunçosa de superioridade do país do Rei do futebol mundial, tudo conjuminado com o que se esboçava ser o falso Milagre Brasileiro na economia.   

Veio então o gol mais bonito do Brasil na copa, pois começou com cinco dribles geniais de Clodoaldo, assim se redimindo do erro anterior, desde antes do meio do campo, continuando com Jairzinho pela esquerda, se livrando do marcador para servir a Pelé no centro da área que, com elegância, calma e a superioridade de Rei do Futebol, rolou para um Carlos Alberto que vinha correndo desde a defesa para acertar um chute definitivo e indefensável.  

Brasil 4 a 1! Tricampeão do mundo! Pelé é caçado até pelos jogadores italianos para entregar sua camisa, numa reverência majestática.   

Então veio o gran finale, que tudo me explicou sobre a razão de tamanha deferência dos donos da casa a um simples estudante universitário convidado.  

Decidimos todos ir para a Beira-Mar numa carreata que se formava, quando a Dona da casa veio até a mim e disse: "diga ao seu pai, que eu mando um abraço para ele".  

Então perguntei: "a Senhora conhece o meu pai?" 

Ela respondeu com uma pergunta: "você não é filho do General Dalton?" Este General via a ser então presidente do Banco de Desenvolvimento do Ceará, indicado pela ditadura, instituição bancária na qual a empresa da família dela tinha relações financeiras. 

Respondi, agora já entendendo tudo: “não, senhora, sou filho de um Sargento da Aeronáutica, herói da segunda guerra mundial, pobre como eu, mas de quem tenho muito orgulho de ser filho.” 

Você, caro leitor, precisava ver a cara de desprezo com a qual ela me olhou!!!  

Saí sorrindo, bêbado e feliz da vida para me confraternizar com a multidão eufórica que se abraçava indistintamente pelo simples fato de cada um do nós sermos brasileiros e pertencermos ao país tricampeão mundial de futebol, esporte nascido nos terrenos baldios dos bairros pobres, facultado aos meninos pobres das periferias brasileiras por sua fácil e barata viabilização.  

A alegria de um torcedor, se abraçando com seu vizinho desconhecido, é interação humana de pessoas com iguais sentimentos e fenômeno social muito raro.  

O futebol brasileiro é do seu povo, e não se confunde com nenhuma apropriação indébita de suas glórias por governos oportunistas! (por Dalton Rosado)   

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