sábado, 10 de dezembro de 2022

A METAMORFOSE: LULA FOI DORMIR PROGRESSISTA E ACORDOU PAI DOS POBRES

demátrio magnoli
CHEQUE DO PRESIDENTE
Bolsa esmola era assim que, 20 anos atrás, Lula qualificava o programa Bolsa Escola de FHC. 

Depois, no poder, o tal bolsa esmola tornou-se o Bolsa Família, até Bolsonaro transformá-lo no Auxílio Brasil, que agora recupera o rótulo de identificação lulista. Sugiro, no lugar disso, um rebranding definitivo: cheque do presidente

A operação publicitária justifica-se duplamente: no campo do marketing, estabiliza a imagem de marca; no das políticas públicas, garante transparência de objetivos.

O Lula oposicionista de 2002 não criticava os valores do Bolsa Escola mas o conceito de transferência direta de renda, inspirado nas propostas de combate à pobreza do Banco Mundial. 

A conversão ideológica do Lula presidente assinalou, ao lado do abandono das ambições petistas de reforma econômica estrutural, a descoberta de uma mina de ouro eleitoral. De larva a borboleta: assinando o cheque, o líder dos trabalhadores metamorfoseava-se em pai dos pobres.

A pobreza extrema declinou sem parar entre 2003 (12,6%, segundo o Banco Mundial) e 2014 (3,3%). No percurso, o Bolsa Família desempenhou papel significativo, mas não determinante. 

O fenômeno da redução da pobreza verificou-se nos mais diversos países em desenvolvimento, da China à Turquia e do México ao Peru, sem vultosos programas de transferência de renda. O longo ciclo internacional marcado por fluxos abundantes de investimentos e valorização das commodities fazia o serviço.

Mas um cheque é um cheque. Lula nunca incrustou o programa de transferência de renda no rochedo da Constituição, evitando conferir-lhe o estatuto de política de Estado. O cheque do presidente deveria ser uma benesse de governo. 

"Meu adversário, que odeia os pobres, terminará o Bolsa Família" –a ameaça assombrou as disputas eleitorais de 2006, 2010 e 2014. No ano mais difícil, quando Dilma Rousseff disputava a reeleição, o valor real do cheque atingiu o ápice: R$ 245,10. Sob o lulismo, o Bolsa Família tornou-se sinônimo de política social.

Bolsonaro aprendeu a executar a mágica, mas de modo desajeitado. Na pandemia, criou o auxílio emergencial; no ano eleitoral, o Auxílio Brasil de R$ 600. A ação tardia, interrompida em 2021, obteve efeitos eleitorais limitados. 

Serviu, porém, para expor as entranhas perversas do mecanismo fabricado pelo lulismo: cada novo governo precisa elevar o valor do cheque que chega a mais de 21 milhões de famílias.  

Lula escolheu R$ 600 para empatar com Bolsonaro –e o suplemento de R$ 150 por filho pequeno para derrotá-lo.

O número escrito no cheque deriva de imperativos de concorrência política, não de um cálculo de eficiência na alocação de recursos públicos.

Programas de transferência de renda aliviam temporariamente a pobreza –mas ocultam suas raízes profundas. 

A depressão econômica gerada pela folia dilmista levou a pobreza extrema a 5,3% em 2018, mas o auxílio emergencial a comprimiu à menor taxa histórica, em 2020, no auge da pandemia (1,9%). 

Em 2021, sem o auxílio, a taxa saltou a 8,4% –e certamente experimentará forte redução em 2022, assegurada pelos R$ 600. O cheque faz milagres efêmeros.

As raízes da miséria só podem ser erradicadas por políticas econômicas responsáveis e políticas sociais universalistas. As primeiras dinamizam o mercado de trabalho, elevando os salários. As segundas ampliam a oferta de bens públicos de qualidade (educação, saúde, saneamento, transportes) e impulsionam a reforma urbana (moradia em áreas centrais). 

Nada disso, contudo, tem o poder sedutor de um cheque assinado pelo presidente –ainda mais quando ele contém a senha do cofre do crédito consignado.

A PEC da Transição é o passaporte para Lula alcançar e ultrapassar Bolsonaro. Seu custo é o congelamento da pobreza estrutural, sempre disfarçada pelo cheque do presidente. Uma mão lava a outra. (por Demétrio Magnoli)

7 comentários:

SF disse...

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A taxa média geométrica de crescimento anual (%) da população residente no Brasil é de aproximadamente 1,67% e é declinante no período (1980-2005), quando ainda se estudava algo em banânia.
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Como sabido, igrejas e governos precisam de gente para existir dada a natureza arcaica de sua obtenção de fausto e riqueza (falsos que sejam) a partir das contribuições arrecadadas (persuasiva ou compulsoriamente) de cada membro infelicitado por suas diretorias.
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Por outro lado, cada vez mais, os produtores de valor verdadeiro estão dispensando o concurso de pessoas em suas atividades e promovem a substituição de trabalho humano por máquinas.
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Eis aí a contradição fundamental sobre o qual se pode construir uma dialética para, então, ter um entendimento claro de qual é o móvel que faz a atual elite fiduciária "dar dinheiro" aos excluídos do sistema produtivo real.
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Os programas de renda universal não resolverão nada, pois a nova força que está impulsionando a humanidade não é mais dinheiro, nem exércitos e nem políticos.
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A guerra da Ucrânia tem servido de campo de experimentação de novas armas, drones e veículos terrestres operados remotamente.
O povo, por inútil para a nova elite, tem sua vida destruída implacavelmente.
Parece o roteiro do filme Bacurau.
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celsolungaretti disse...

Companheiro,

essa hipótese já foi transformada em filme: "Zardoz", de 1974, com roteiro e direção do John Boorman e o Sean Connery no papel principal.

Mostra uma elite que conseguiu inclusive deter o envelhecimento e alcançar a imortalidade. Ela vive numa espécie de Olimpo e não se reproduz. Um de seus membros se finge de Deus e aparece para os selvagens que subsistem na Terra, manipulando-os para trabalharem, a fim de fornecer o que os privilegiados precisam; e a exterminar outros humanos, para não haver crescimento populacional.

É algo mais ou menos assim que vc parece projetando, salvo que, por enquanto, a ciência ainda não descobriu como prolongar a vida e a juventude indefinidamente. Talvez acabe chegando lá.

Quanto ao charlatão que se finge de Deus Zardoz (uma auto-ironia, pois montado a partir de wiZARD of OZ), poderia muito bem se chamar Edir ou Malafaia.

E o líder dos exterminadores, caso se contentasse em cumprir tal papel de joguete dos poderosos (ele começa a compreender a situação real) e, ademais, fosse um bundão canalha se fingindo de machão, todos sabemos qual o sobrenome italianado que lhe cairia como uma luva.

O filme é tão bom que já não se encontra em quase lugar nenhum. Enfim, talvez vc consiga baixá-lo em https://depositfiles.org/files/u1yiho313 ou em https://raridades0800.blogspot.com/2015/02/zardoz-1974-john-boorman.html

Abs.

SF disse...

Valeu, Celso. Assistirei.

SF disse...

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Assisti e não entendi muito o roteiro.
Vi, no entanto, um bom filme feito com poucos recursos e muita criatividade.
Também percebi que o diretor queria dizer uma coisa fundamental, mas não soube como. Por isso, as cenas parecem não apresentar uma continuidade lógica que levasse ao espectador ao menos intuir o que ele queria expressar.
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"Não posso falar de um reino onde a carruagem das palavras não encontra caminhos". Sidarta.
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Eu sei o que ele quis mostrar. Direi adiante.
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O Tabernáculo era o ó e foi preciso vir alguém de fora para acabar com o tédio e começar algo novo, já que os moradores não assumiam as suas escolhas e culpavam os outros por elas, como sempre acontece na má-fé.
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Aff! Bastava Sartre ter escrito este capítulo da má-fé e estaria feito o trabalho dele, mas o cara gostava de escrever.
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A produção se virou nos trintas e o Sean... o que não se faz para ganhar uns trocados!
O pessoal do figurino tinha algo contra ele.
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Enfim, um bom filme que não conhecia e que, desculpe aí Celso, não tem a ver com o meu pitaco de por quê as elites políticas caducas estão dando dinheiro aos excluídos.
É que elas e seu estado "a la" Montesquieu já foram para o lixo da história.
Perderam completamente a relevância para uma elite high tech que já está dando as cartas e mandando guerras, moeda fiduciária, estado-nação e todo aparato de exploração criado pela burguesia industrial-financeira e seus militares para o oblívio mais do que merecido e tempestivo.
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O que conecta o filme a meu pitaco é que acho que os novos donos do mundo serão malthusianos e sua agenda será a ecologia, no viés preservacionista, ao passo que os atuais desocupantes estão tomando medidas anti-malthusianas, pois precisam desesperadamente criar algum tipo de ilusão de melhora nas populações do planeta, que não acreditam em mais nada.
Muito menos em Zardoz!
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Ocorre que existe uma resposta para o dilema da natureza humana e sua contingência. Eu citaria Sartre-Roquetin, mas não, citarei Marcella:

"Ao passear no jardim público, eis que finalmente o incômodo de Antoine se desvela completamente para ele. (...) A existência o aborrece, a Náusea se apossou por completo dele e já não há mais no personagem a ilusão de se livrar dela. Ele sabe, de maneira clara, que não se trata de uma doença. Ao contrário disso, ele relata em meio à epifania: “A Náusea sou eu.” (SARTRE,2011, p. 169). A existência o penetrava por todos os poros de seu corpo. Agora havia nele a certeza do que significava existir. Sua existência dependia dele, somente de suas escolhas e de seu projeto existencial. Não havia mais para o personagem como fugir através de seu passado. A vida era o que se apresentava agora, no momento presente e dependia que ele se reafirmasse a cada instante. A Náusea representa todo peso da existência que recaí sobre Antoine. No momento em que o personagem conclui “O essencial é a contingência”, ele possui a sua Náusea, a compreende por completo. É capaz de exprimir em palavras o que esse enjoo representa: a gratuidade da existência. Antoine se depara com sua existência não justificada".
Marcella P. Ignácio A Náusea: um estudo sobre a angústia em Jean-Paul Sartre (Coimbra - 2019)

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O Mágico de Oz! kkk! Não tinha A Náusea naquela biblioteca?
Ou naquela distopia Vortex?

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É pacabá!
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celsolungaretti disse...

O filme tinha a ver tanto com seu pitaco quanto com elucubrações várias que leio sobre a opção dos poderosos pelo extermínio dos pobres. E foi este o elo: a elite dos Peter Pans estimulando exterminadores e inventando uma religião para melhor controlar os de fora do seu círculo de privilegiados.

Se perceberem que a explosão populacional tornará impossível conter o aquecimento global no limite do aceitável, é possível que inventem uma guerrinha para reduzir o excesso de gente.

E não seria isto que o Trump e o Bozo estariam querendo ao agirem de forma a maximizar as vítimas do coronavírus?

Enfim, vejo o Zardoz como uma das distopias mais interessantes de quantas já frequentaram páginas e telas.

Até porque me parece que Marx tinha toda razão na sua refutação do Malthus no século retrasado, mas hoje a coisa tomou um rumo bem diferente do que ele previa e se torna cada vez mais difícil garantir a sobrevivência dos 8 bilhões de terráqueos.

SF disse...

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Grande Celso!

Divirjo.

Marx não refutou a lógica Malthusiana, apenas apontou que recursos há e são mal distribuídos.
Ponto para Marx como ideólogo utópico de uma sociedade sem classes, mas sua tese a respeito da história ser a história dos meios de produção nos remete a um futuro sombrio.
A nova classe dominante não precisa de grandes populações como as elites de antanho.
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Os números são frios e não tem amigos.
Mesmo que os recursos fossem bem distribuídos inevitavelmente teríamos o ponto onde o controle da população seria imperativo.
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Sua afirmação:

"mas hoje a coisa tomou um rumo bem diferente do que ele previa e se torna cada vez mais difícil garantir a sobrevivência dos 8 bilhões de terráqueos".

Não poderia ser neomalthusiana!
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Bem, cálculos que ouvi por aí, e nem lembro a fonte, estimam que o planeta tem capacidade de sustentar dignamente 34 bilhões de seres humanos, vivendo numa sociedade minimalista, autossuficiente, recicladora e reaproveitadora.

Passado este número, o sistema terra colapsa.

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Equações são chatas, mas é o que temos.
Elas mostram as correlações causais entre eventos materiais.
Então, bingo, Malthus tem razão.
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Já os comportamentos humanos tem motivos, não causas, e não podem ser reduzidos a equações.
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Por isso passei a estudar ontologia e metafísica.
*
Fica na paz.
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celsolungaretti disse...

Andei estudando sofregamente os clássicos marxistas em 1968, chegando a passar dias inteiros na Biblioteca Central de SP, porque a liderança da minha base secundarista caiu no meu colo e eu me sentia desqualificado para exercer o novo papel.

Lembro-me de ter lido que, para Malthus, a equação não fechava porque o necessário para uma sobrevivência digna crescia em progressão aritmética e a população mundial em progressão geométrica.

E que Marx via como possível o primeiro universo também crescer em pg, desde que o desenvolvimento das forças produtivas deixasse de ser entravado pelas relações de produção que o condicionavam à obtenção do lucro e não à satisfação das necessidades humanas.

Depois veio a luta armada, a prisão, a reflexão sobre tudo que ocorrera naqueles anos frenéticos. Voltei à liberdade sentindo-me como o Gilberto Gil: "Meu caminho pelo mundo/ Eu mesmo traço/ A Bahia (no meu caso, a militância de até então) já me deu/ Régua e compasso".

De qualquer forma, mesmo sem me aprofundar no tema, salta aos olhos e clama aos céus que o desperdício insensato dos recursos necessários para a continuidade da existência humana já avançou tanto que a questão não é mais quantos terráqueos poderiam existir numa sociedade perfeita, mas sim como evitarmos que o aquecimento global atinja o ponto de não-retorno e sejamos destruídos por consequências em cascata das alterações climáticas e pela sinergia entre as calamidades já antevistas.

Os filósofos nada mais fizeram do que interpretar a realidade de diversas maneiras, mas a hora de transformá-la não só chegou, como já está passando.

E meu maior temor é que não vejo a mobilização de vontades para que as transformações necessárias sejam efetuadas enquanto a humanidade ainda pode ser salva.


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