UMA REVOLUÇÃO DE SINAIS INVERTIDOS (*)
Retomar a capacidade de pautar a agenda de debate é a única forma de vencer efetivamente [o Bolsonaro].
Isso passa por insistir que a noção de liberdade propalada pelo bolsonarismo, baseada no empreendedorismo e na livre iniciativa, é uma fraude, simplesmente uma farsa.
Empreendedorismo não é uma forma de liberdade, mas de servidão. É a violência da redução de todas as relações sociais a relações de concorrência, de competição e a compreensão de toda experiência como capital no qual se investe. É a implosão de toda obrigação de solidariedade. Nenhuma emancipação social passará pelo empreendedorismo.
Mas lutar contra tal servidão significa, concretamente, lutar por uma sociedade que não faz dos trabalhadores os empreendedores de seu próprio sofrimento. Significa ter propostas concretas sobre o mundo do trabalho, significa lembrar de que forma a saúde mental é destruída pela sujeição aos imperativos de flexibilização e iniciativa.
Hoje, o Brasil é o país com o maior número de casos de transtornos de ansiedade no mundo e tem um dos maiores índices de diagnósticos de depressão (13,5% da população). Essas são questões políticas centrais porque mostram o preço pago para viver nessa sociedade. Como dizia a pichação de um muro em Santiago do Chile: "Não era depressão, era capitalismo".
Já o segundo ponto merece lembrar: não há política organizada pela esquerda sem colocar a divisão povo/elite onde ela é mais inclusiva e politicamente forte, a saber, na denúncia da espoliação de classe a que estamos todos submetidos.
Precisamos colocar questões do tipo: o que temos a dizer para quem é homem, branco, pobre, motorista de uber, trabalhando 12 horas por dia em condições dignas do século 19?
Diante de nossos discursos reinantes, é absolutamente racional que ele queira alguma garantia de que não será esquecido devido à prevalência de seus dois primeiros predicados.
Nos dias que correm, vemos operadores do sistema financeiro (que até aqui apoiaram Lula) afirmar que ele deveria abandonar de vez qualquer veleidade de rever reformas trabalhistas e clarificar seu programa econômico.
Esse é aquele tipo de escolha forçada, na qual você perde em qualquer situação. Se Lula faz o que lhe pedem, ele simplesmente fica sem discurso para se contrapor a Bolsonaro e não tem garantia alguma de que a elite liberal não vá lhe exigir cada vez mais para continuar a dar seu apoio.
Ao final, as promessas de Bolsonaro, que defendeu os interesses da elite brasileira como um cão de guarda, podem e acabarão por falar mais alto. Ou seja, teremos o pior dos mundos, que consiste em perder em silêncio.
Mas, se Lula não faz o que lhe pedem, os liberais terão uma justificativa para o abandonar, embora ficássemos com mais condições para fazer o que realmente importa: ter uma alternativa concreta sobre o futuro para dizer ao povo e ganhar as eleições mobilizando outro mundo possível.
Exemplo: por que não usarmos essas últimas semanas para pautar a eleição com propostas como redução da jornada de trabalho para 35 horas, aumento real do salário mínimo e imposto sobre grandes fortunas para a ampliação do SUS?
Sabemos da dificuldade de pautar o debate por essa via. Pois a esquerda brasileira foi colocada numa situação de chantagem contínua.
Para barrar o bolsonarismo, ela deveria ser a operadora de um grande pacto democrático com todas as forças contrárias ao governo.
Isso significa permitir que tal grande coalização ocorra, retirando da agenda política do país todos os pontos que dividem a população, a começar pelo viés estatizante e pela mobilização da luta de classe.
Há de se agir como se houvesse chegada a hora de uma grande aliança nacional entre capital e trabalho e clamar, como vimos no editorial terrível de um grande jornal brasileiro, que deveríamos reconhecer que a agenda liberal dos últimos anos trouxe avanços duradouros. Como se acordar num país com filas para comprar osso em supermercados fosse agora sinal de avanço duradouro...
No entanto, esse modelo de grande pacto democrático já foi tentado em outros países, com resultados catastróficos. Ele foi o eixo da política italiana e tudo o que se conseguiu foi pavimentar a ascensão de um efetivo governo fascista com Giorgia Meloni.
Ele foi também aplicado na Hungria, sem nenhum efetivo sucesso eleitoral, à parte a conquista da prefeitura de Budapeste. Como se não bastasse, o 1º turno das eleições brasileiras serviu para mostrar que tal modelo também não funcionou em nossas terras.
Talvez o fracasso mais emblemático da estratégia geral adotada pela oposição tenha ocorrido no Rio de Janeiro, sob o comando de Marcelo Freixo.
Articulando uma larga aliança que trouxe à vida figuras como César Maia, abrindo mão de várias pautas que caracterizaram sua história e flertando abertamente com estética e comunicação evangélica em nome de um grande pacto contra a barbárie, ele acabou eliminado no 1º turno.
Esse modelo nacional de aliança, da mesma forma, não realizou aquilo que prometeu. A esquerda pouco cresceu no Sudeste, se comparado às eleições anteriores de Lula, e pouco entre os eleitores que normalmente votam e votaram no campo de centro-direita.
O eixo de salvação nacional e de sustentação da candidatura Lula continuou sendo o Nordeste. O que mostra quão correto estava um dos maiores intelectuais que o país conheceu, o paraibano Celso Furtado.
Ele nos mostrou que uma política efetiva de desenvolvimento regional seria imediatamente sentida pela população, produzindo forte mobilidade social e trazendo vínculos políticos duradouros para os que nela apostaram.
Nessa dificuldade da oposição, não devemos nos deixar pautar pelo desespero. É difícil imaginar que há algum ganho efetivo em imitar o tipo de comunicação do bolsonarismo, como se isso não tivesse o efeito contrário, isto é, mostrar o quão certo estava Bolsonaro em se comunicar daquela forma, apelando para preconceitos atávicos.
Essa estratégia apenas normaliza Bolsonaro. Exemplar aqui são os vídeos procurando associar Bolsonaro à maçonaria. Não é copiando a gramática do oponente que se ganha uma eleição, mas cortando o jogo e impondo outra gramática. Não se ganha uma eleição falando como o oponente, não se ganha uma eleição assumindo os fundamentos econômicos do oponente.
Essa eleição é certamente o momento mais dramático da história brasileira. Ela mostra que não existe mais aquele país onde ainda era possível costurar grandes pactos. Aquele país acabou. Não há mais base social para sustentá-lo.
Entramos em definitivo na era dos extremos. Por isso, há que se lembrar que uma extrema-direita reeleita significa seu projeto de sociedade plebiscitado e normalizado.
Vemos articulações espontâneas vindas de todas as partes do país. Isso nos mostra que o Brasil não aceitará o curso dessa revolução conservadora que nos ameaça há tantos anos.
Contra ela, enunciemos claramente as formas de outra sociedade. (por Vladimir Safatle)
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(*) Por tratar-se de um artigo demasiado longo segundo o padrão habitual deste blog, optei por publicar apenas a parte final, mas os leitores poderão acessar sua íntegra no site da Comissão Arns, para o qual ele foi escrito.
Quanto à sua relativa desatualização, considerei-o ainda relevante porque, embora suas sugestões não tenham sido aproveitadas pelo PT e aliados no 2º turno, podem servir adiante para a mudança de posturas. Sonhar é preciso. (CL)
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