Desde a imposição de sanções financeiras à Rússia por parte dos países da Otan, como contra-ataque à guerra na Ucrânia, muito se diz na mídia e entre as pessoas do possível impacto gerado na economia daquele país.
De fato, a maioria das sanções dificulta imensamente a vida russa. O cerne delas está na capacidade do país de fazer comércio internacional de modo desembaraçado e de receber investimentos estrangeiros.
A retirada, p. ex., de vários bancos – não de todos, vale lembrar – do sistema de pagamentos mundial transformou em inferno a entrada e saída de divisas.
Este fato, somado ao confisco dos dólares de Moscou investidos na dívida estadunidense, diminuíram sensivelmente a capacidade de pagamentos externos, praticamente inviabilizando o comércio exterior.
Ao mesmo tempo, a saída massiva de investidores do país também provoca uma queda imediata do fluxo de recursos, reforçando a queda de divisas. O resultado é o choque no valor do rublo, o que, em se tratando de um país com forte importação de produtos manufaturados e serviços, gera imediata pressão inflacionária.
A arma adotada pelos países da Otan, portanto, foi a guerra financeira contra a Rússia, usando o dólar e o euro, as moedas dominantes do sistema financeiro mundial.
A população russa sentirá no bolso o resultado deste choque. No entanto quem sentirá mais será justamente a classe dominante, composta pelos magnatas bilionários, pois vai ser forçada a converter suas fortunas, hoje em dólar e euro, para o rublo enfraquecido, perdendo bilhões no processo.
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Um dos pomos da discórdia: o gasoduto Rússia-Alemanha. Com seu contorno marítimo, ele tira royalties das empresas estadunidenses na Ucrânia. |
[E, o que é mais doloroso para ela, ficará incapacitada de usufruir na Europa Ocidental de toda sua riqueza.]
No entanto, isto colocará a Rússia de joelhos a ponto de ser um calo no pé de Putin? Minha hipótese é que não.
Para entender isso, é necessário ter um panorama da economia russa e de seu comércio exterior. A terra de Tolstói possui uma capacidade produtiva imensa, sendo atestado por alguns dados:
— é a terceira maior produtora de ouro;
— é uma das maiores produtoras de tecnologia aeroespacial;
— possui um dos maiores parques de indústria pesada;
— é uma das maiores produtoras de trigo e a maior exportadora do produto;— é uma das maiores produtoras de tecnologia, tendo, em dez anos, aumentado em mais de 10 vezes o PIB no segmento;
— possui o seu próprio sistema de buscas, o Yandex, usado por cerca de 60% da população.Só estes fatos já mostram não ser a economia russa uma Venezuela ou um Irã, países também pressionados por sanções estrangeiras.
Só estes fatos já mostram não ser a economia russa uma Venezuela ou um Irã, países também pressionados por sanções estrangeiras.
É verdade que muito disso poderá sofrer com a asfixia de investimentos externos, mas a produção de recursos, sobretudo de produtos industriais, minerais e agrícolas, também tem o objetivo de atender o mercado externo, principalmente europeu.
Neste particular, o comércio com a União Europeia é intenso, sendo atestado por estes números:
—5% de todo o comércio do bloco é com a Rússia;
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Biden repete a tática de sancionar usada com Venezuela e Irã. Ela funcionará com um país do porte da Rússia? |
— 37% das importações russas provêm da UE;
—38% das exportações da UE vão para a Rússia;
— o total das transações entre UE e Rússia foi de 174,3 bilhões de Euros em 2020 (cerca de 1 trilhão de reais);
— a Europa compra cerca de 67 bilhões de Euros da Rússia (cerca de 420 bilhões de reais) só em petróleo;
— 26% do óleo e 40% do gás usados pela Europa provêm da Rússia.
Estes números mostram o quanto a Europa depende de Moscou, seja para importar recursos minerais, seja para exportar produtos. É, portanto, sintomático que as sanções não tenham atingido o nível de um bloqueio comercial, mas apenas financeiro.
Avançar para um bloqueio total contra a Rússia seria trágico para a Europa, pois faria disparar os preços de insumos básicos e desabasteceria a indústria e a própria alimentação europeias. Por isto, é pouco provável que tal aconteça.
As sanções financeiras poderão surtir efeito no curto prazo, mas no médio e longo a tendência é perderem eficiência. O motivo para isso é a pujança econômica da Rússia, autossustentável em produtos industriais de base, minerais e agrícolas, e a necessidade que outros países têm de comprar dela.
O mais provável é que ocorra um rearranjo da organização da economia do país, com uma centralização ainda maior no Estado e a nacionalização de setores hoje parcialmente sob controle estrangeiro.
Mesmo o choque de divisas poderá ser solucionado mediante a adoção de outras formas de pagamento e mesmo por meio do rearranjo do fluxo com países não alinhados à Otan.
O fato de as ditaduras árabes terem permanecido ao lado de Putin é um indicativo de que o país não está totalmente isolado, o mesmo sendo dito a respeito da América Latina e de várias nações da África.
O que podemos estar assistindo é o aprofundamento da divisão da ordem capitalista em blocos cada vez mais antagônicos, ou seja, à uma globalização estilhaçada.
Hoje, a única forma de colocar de fato a Rússia de joelhos seria o bloqueio comercial completo, mas isto, como disse, é algo distante. Então, acredito que a Rússia poderá até mesmo sair mais fortalecida no médio e longo prazo desta crise, num fantástico efeito-rebote. (por David Emanuel Coelho)
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