quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

AUTOCENSURA DE CHICO É A SIMULAÇÃO DE FORÇA DOS IMPOTENTES

Chico Buarque autocensurou a execução de uma de suas canções: Com açúcar, com afeto (1967).

Trata-se de uma música por ele composta a pedido de Nara Leão (1942-1989), que a interpretaria com muito charme e suavidade. 

Fala sobre o sofrimento de uma esposa amargurada com a infidelidade e os abusos psicológicos do marido. 

É uma canção genial, gravada também pelo autor; a primeira pessoa é muito bem interpretada por Chico Buarque em sua execução. 

Mas não é que algumas feministas encrencaram com a letra da música e pediram para o compositor nunca mais cantá-la?! 

Qual seria o motivo para esta visão negativa sobre a canção? Sinceramente, não entendi bem, pois a música é extremamente delicada, não tendo nenhuma palavra mais dura, ao contrário da famosa Geni e o Zepelim

Só posso considerar, então, que estas feministas caíram na lamentável confusão entre arte e realidade.

Tal confusão não é nova, já sendo encontrada em Platão: ele queria expulsar os poetas de sua cidade imaginária pois representariam os deuses de modo imoral! 

Sabiamente, Aristóteles corrigiu o mestre, trazendo à tona o fato de que a arte  não se confunde com o mundo material e que, ao contrário de serem condenáveis, as representações poéticas dos deuses eram formas de humanização, pois executavam o mecanismo da catarse das emoções humanas. 

A catarse – literalmente, vômito, colocar para fora – propiciava o expurgo das emoções de violência e sofrimento dos espectadores e ouvintes das obras poéticas, fazendo com que estes refletissem sobre a própria vivência e eliminassem sentimentos negativos. 

Milênios depois, Lukács falou a respeito da natureza reflexiva da arte: ao vermos uma representação artística e nos identificarmos nela, refletimos sobre nossa própria situação social e humana. Nos tornamos mais conhecedores de nós mesmos. 

Assim, se uma mulher, p. ex., ouvisse a música Com açúcar, com afeto, estando em situação semelhante, mas de modo ainda não totalmente consciente, ela poderia refletir sobre sua condição. Quiçá dar um passo rumo ao rompimento do casamento opressivo. 

Obviamente, isso passa pelo sofrimento de
vivenciar psicologicamente o fato expresso na música. Mas, esse fato é primordial para se alcançada a catarse

Portanto, ao censurar a obra, não se está ajudando em nada. Pode-se mesmo estar privando milhares de mulheres de refletirem sobre a condição em que se encontram. 

Parece aqui haver uma inversão idealista entre a realidade e a ideia. Marx já identificara essa inversão ao analisar o pós-hegelianismo de Bruno Bauer e demais (este filósofo alemão, seu contemporâneo, acreditava que bastava a crítica das ideias para mudar o mundo e criticava as massas populares por quererem fazer revoluções quando ainda não se tinham apropriado da crítica em sua profundidade). 

Considerar a censura de uma música como sendo o caminho para acabar com o sofrimento concreto e real de milhares de mulheres presas a maridos infiéis e abusadores é como acreditar que basta banir cenas de violência das novelas e filmes para se acabar o crime no mundo real. 

Este ponto, no entanto, é uma falha teórica largamente encontrada no chamado identitarismo: seus adeptos acreditam que a reforma da estrutura simbólica – a linguagem, a arte, a ciência, etc. –funcionaria como uma transformação efetiva do mundo real. Não funciona. Pode-se viver na mais absoluta opressão econômica e política com a mais inclusiva das linguagens. 

Não se trata, portanto, de deixar de executar-se uma música para não abordar o sofrimento das mulheres, mas de, concreta e materialmente, emancipar a mulher do seu matrimônio opressivo. Uma mulher concreta, que sofre e chora de verdade, e não apenas na interpretação de um(a) artista de talento. (por David Emanuel Coelho) 

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