domingo, 12 de dezembro de 2021

DALTON ROSADO RELEMBRA O GOLPE DE 1964 E O "GOLPE DENTRO DO GOLPE" (AI-5)

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A CIA financiou setores da Igreja Católica na Marcha da Família, com Deus pela Liberdade
e noutros movimentos religiosos" (frei Betto)
Considero importantes os depoimentos pessoais dos que viveram os anos de chumbo, seus testemunhos da História e as ilações que, a partir deles, podem ser feitas para o momento presente. É um contributo do blog para que a história negativa não se repita. 

Assim, nesta véspera de mais um aniversário da assinatura do infame AI-5 [outro post sobre as 53 velinhas manchadas de sangue pode ser acessado aqui], vamos à obra.  

Em 31 de março de 1964 eu estava próximo de completar 14 anos (faltavam 22 dias). Um adolescente apaixonado por futebol, que morava em Mossoró (RN), cidade cujo pequeno destacamento da FAB era comandado por meu pai, então sargento da Aeronáutica.

Ele havia conhecido minha mãe, exatamente em Mossoró, 16 anos antes, quando ele foi para lá transferido. Minha mãe era oriunda da tradicional família Rosado; tinha como primo Jerônimo Dix-Sept Rosado Maia, prefeito da cidade e aspirante ao governo do Estado, o que viria a acontecer dois anos após. 

O governador Dix-sept Rosado morreu num acidente de avião em 1951, quando viajava ao Rio de Janeiro para uma audiência com o presidente Getúlio Vargas. 

Meu pai era um mineirinho nascido na histórica cidade mineira de Mariana (a mesma da tragédia da barragem) e que fora para o Rio de Janeiro, lá se tornando militar. Minha mãe, originária da classe média mossoroense (os Burlamacchi, de origem italiana, e os Rosado, de origem espanhola), apaixonou-se por aquele militar de baixa patente e com ele se casou. 
Eis a Mossoró quando os pais do Dalton namoravam

Nasci em 1950 no Rio de Janeiro, para onde meu pai houvera sido transferido logo após o casamento. Assim, como diz a música de Chico Buarque, sou um brasileiro nato, de muitos cantos e origens. 

Vivíamos a pobreza sustentável de uma vida familiar de militar de baixa patente com cinco filhos, sendo eu o primogênito.  

Quando passei no vestibular de Direito, aos 19 anos, fui cursar a Faculdade em Fortaleza (capital mais próxima de Mossoró) e por lá fiquei até hoje, pois foi onde descobri a régua e o compasso consolidadores daquilo que antes já se formara na minha personalidade: a luta contra as injustiças sociais. 

Meu pai, que servira na guerra patrulhando o Atlântico Sul como sargento rádio-telegrafista, não fazia o antigo estereótipo do militar casca grossa, disciplinador rabugento e bitolado, e minha mãe era envolvida com assistência social aos desvalidos. 

Formavam um casal sem nenhuma aspiração de poder e com imenso senso de justiça, o que certamente me influenciou a ter uma visão crítica daquela sociedade desigual que chocava até o mais insensível observador de cena cotidiana rural e urbana. 

Lembro-me de meu pai, como comandante militar subalterno, recebendo um oficial superior da nova ordem golpista, o qual, de cara, reclamou da poeira no seu sapato; meu pai respondeu batendo continência e dizendo sim, senhor!
Alunos tentando gravar aulas eram policiais infiltrados
Na minha ingenuidade de adolescente, achei que aquilo era uma injustiça e uma afronta ao meu pai, que havia engraxado o sapato até ficar brilhando, mas não tinha como evitar que ele ficasse novamente empoeirado por causa da sequidão da terra.      

Depois assisti à prisão de um comerciante, pai do meu melhor amigo, que comprava uns uísques escoceses contrabandeados no porto de Areia Branca para tomar com os amigos; um tenente do Exército o deteve numa operação espetacular (bem no estilo da Lava-Jato de Sergio Moro) como se fosse um grande contrabandista. 

Esse era o clima policialesco do combate à corrupção alardeado pelos golpistas. Entristeceu-me a vergonha do meu amigo ao ver seu pai algemado, colocado em cima de um caminhão e sendo tratado como um perigoso bandido, embora não passasse de um pacato cidadão que apenas gostava de tomar uns uísques mais baratos e de boa qualidade com os amigos a quem prestava favores.

Meu pai foi para a reserva logo em seguida, afastando as preocupações da família sobre a possibilidade de ser considerado como adversário do regime e receber alguma punição. 

Estas eram as minhas impressões de menino de 14 anos sobre o golpe de 1964, nos meses e anos subsequentes. 
"vi o AI-5 como um golpe dentro do golpe"

Já entrando na vida adulta, vi o AI-5 do final de 1968 como um golpe dentro do golpe

Em 1969 vi muita gente sendo perseguida. Uma delas pude até salvar da prisão, já que alertado pelo motorista da pick-up que serviria de transporte quando fossem detê-la no dia seguinte. 

Tratava-se do meu melhor amigo, que então teve tempo suficiente para dar o fora e hoje é um brilhante professor de física na UFRJ. 

Em Fortaleza, na faculdade de Direito, assisti em 1970 aos embates de professores com alunos que portavam gravadores, proibidos pelos mestres sob pretextos, já que não podiam alegar o motivo real:  eram policiais infiltrados para vigiá-los. 

A indignação com o amordaçamento da livre expressão do pensamento e a amizade com o pessoal da esquerda clandestina (inclusive do movimento cultural do qual saíram Belchior, Jorge Melo, Ednardo, Rodger Rogério, Teti e o eleitor do Boçalnaro, Raimundo Fagner, que depois caiu em si e detonou o governo genocida) fortaleceram a minha inclinação natural para as causas populares e a admiração pelos que ousavam travar o bom combate numa época de trevas.   

Os anos de chumbo foram marcados pelo falso milagre brasileiro; pela euforia da brilhante conquista da seleção brasileira no México, aproveitada de modo ufanista pelos golpistas; e pela perseguição sem tréguas à esquerda, que somente podia se articular nos subterrâneos da resistência.
Dalton foi o secretário de Finanças da prefeita Maria Luíza Fontenele 
O que se viu daí em diante foram: 
— demissões arbitrárias; 
— perseguições de todo tipo; 
— banimentos, intensificação das cassações de parlamentares;
— prisões, torturas, assassinatos;
— um clima de medo, em contraponto à alegria de grande parte da classe média. 

Eram os deslumbrados com o boom econômico, indiferentes aos acontecimentos políticos  e eufóricos com a ilusória melhora do padrão de consumo, impulsionada pelos dólares de uma dívida que iria nos custar muito cara. 

Tudo sob o silêncio da censura à imprensa que somente divulgava os êxitos da ditadura. 

Após me formar no final dos anos 70, passei a ser:
— advogado de causas populares: 
— fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da arquidiocese de Fortaleza, com o cardeal Aloísio Lorscheider (1980); 
— fundador do PT (1981); 
— um dos coordenadores da campanha vitoriosa do PT à prefeitura de Fortaleza em 1985; 
— secretário de Finanças de Administração popular (1986 a 1988); 
— candidato a prefeito de Fortaleza, apoiado pela então prefeita Maria Luíza (1988), tendo ambos sido expulsos porque os dirigentes nacionais do PT preferiam outra candidatura; e
— estudioso das teorias revolucionárias, o que me levou a convergir para a crítica da economia política marxiana e a escrever alguns livros sobre o tema, ainda inéditos, além de colaborar com jornais e blogs.

Esta é a trajetória pessoal de um cidadão preocupado com a renitente e histórica tragédia do povo brasileiro, apesar da imensa potencialidade material do nosso país; e com a faina tresloucada dessa extrema-direita que tenta fazer-nos regredir a um passado atroz e ignaro. 

Ditadura nunca mais! (por Dalton Rosado) 

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