domingo, 29 de agosto de 2021

A TIBIEZA DA ESQUERDA NA REMOÇÃO DO ENTULHO AUTORITÁRIO TEM TUDO A VER COM A ADESÃO DAS PM's AO GOLPISMO

Por não havermos feito a lição de casa quando do final do arbítrio e volta à civilização (ou seja, durante a redemocratização), voltamos a nos defrontar com problemas que deveriam ter sido resolvidos lá atrás, como  o do acentuado componente autoritário das polícias estaduais. 

Na sua trajetória para concentrarem poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. 

Precavidos, os usurpadores do poder resolveram assegurar-se de que tais paisanos não contariam com tropas a eles leais, no caso de tentarem resistir à nova ordem que eles estavam instalando.

O governador paulista Adhemar de Barros, p. ex., até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto –o que ele sempre fora– mas, principalmente, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).

Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar, de forma inequívoca, que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reserva do Exército".

Na prática, seus comandos foram sendo cada vez mais subordinados aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-Codi's da vida acabaram ciosamente repassadas aos novos  pupilos

Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, até a atualidade, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns).

Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar. 

Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de Estado no Brasil.

E tal modelo de militarização do policiamento urbano, iniciado em São Paulo  foi espalhado por todo o País, assim como se deu com o próprio DOI-Codi, criado em SP (com o nome de Operação Bandeirantes) como uma entidade repressiva autônoma, sustentada por doações de particulares, liderada por oficiais das Forças Armadas e utilizando pessoal subalterno das três Armas e das polícias civis. 

Paradoxalmente, a Oban não tinha existência ilegal, mas o órgão legalmente incumbido da repressão política, o Deops, estava a ela subordinado na prática. Depois de vários meses, contudo, o modelo da Oban, rebatizado como DOI-Codi, foi incorporado à estrutura do Exército e disseminado pelo País.

Enfim, a esquerda tinha plena ciência de que tal ovo da serpente havia sido chocado durante a ditadura militar mas nos deixou, ao Marcelo Freixo e a mim, falando praticamente sozinhos, quando passamos várias décadas pregando insistentemente a desmilitarização do policiamento urbano. 

E os governos petistas, além de não assumirem tal bandeira, quase sempre evitaram sequer questionar as chacinas e o uso excessivo da força pelas PM's, inclusive quando da bestial repressão aos manifestantes de junho de 2013.

Consequentemente, o que havia de pior no regime de exceção continuou vigendo nas polícias estaduais após a ditadura militar ter sido jogada na lixeira da História. E fazendo a cabeça dos oficiais de vários contingentes das PM's, como a Rota, cujos índices de letalidade estarreciam o mundo!

Em 2012, p. ex., o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou a extinção das polícias militares brasileiras, em função de seu altíssimo índice de letalidade e de parte expressiva de tais óbitos se dever a execuções extrajudiciais.

A ONU chegou a tal conclusão após analisar 11 mil casos de alegadas  resistências seguidas de morte, constatando quão frequente era não haver resistência nenhuma e as autoridades brasileiras acobertarem os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.

Segundo um levantamento então divulgado, em São Paulo, no ano de 2011, a PM havia matado seis vezes mais pessoas (!) durante ações de combate ao crime, do que seus pares da Polícia Civil. 

Os omissos, que cruzaram os braços enquanto ocorriam tantos episódios escabrosos e inaceitáveis, serão moralmente responsáveis pelas mortes que porventura ocorrerem quando da micareta golpista de 7 de setembro. (por Celso Lungaretti)

6 comentários:

Fausto Neves disse...

Celso

É a antológico este seu artigo.
Nada a crescentar.
Foi bom encontra-lo também no Correio do Brasil

Abraço

celsolungaretti disse...

Infelizmente, os erros do passado hoje cobram seu preço.

A desmilitarização do policiamento urbano deveria ter sido uma bandeira da esquerda, não de um ou outro esquerdista isolado. Então, as policiais estaduais viraram uma incubadora de oficiais ultradireitistas, por causa da cultura de truculência que haviam absorvido no contato com os Forças Armadas e das denúncias de suas chacinas por parte dos defensores dos direitos humanos.

A decisão do Lula de negar o apoio do Executivo à revogação da anistia que os torturadores haviam concedido a si próprios em plena vigência do arbítrio impediu a punição penal de culpados de homicídios, estupros, torturas, ocultação de cadáveres, etc. O máximo que se conseguiu, dependendo unicamente do Judiciário, foram uma ou outra vitória em ações cíveis.

Até a Lei de Segurança Nacional continuou em vigência!

Não sou de ficar lembrando toda hora de vitórias do passado, mas eu lutei durante uns 5 anos para que do perfil da Rota, abrigado na página virtual do Governo do Estado, fossem retirados trechos nos quais essa unidade, a mais impregnada do espírito exterminador, fazia elogios a seu próprio papel durante a ditadura militar. Cheguei a lançar uns 20 textos diferentes, inclusive cartas abertas a três governadores.

No final, a secretária federal dos Direitos Humanos, Maria Rosário, informada da minha luta pelo Ivan Seixas, levou o problema ao governador de plantão e este determinou à PM que os piores desses trechos fossem deletados.

Depois o Lula faz pouco caso dos que pedem ao PT uma autocrítica de tantos e tantos erros cometidos...

O pior deles, na minha opinião, foi ter voltado as costas aos manifestantes de junho de 2013. Eles sofreram uma intimidação exacerbada e ILEGAL das polícias e dos judiciários estaduais e isto desiludiu muitos jovens insatisfeitos com o status quo, que acabaram atraídos pela maior disposição de luta da extrema-direita.

Na minha opinião, foi tal omissão terrível do PT em solidarizar-se a um movimento surgido em nosso campo que começou a encaminhar os acontecimentos no sentido da derrubada da Dilma, a prisão do Lula e a eleição do Bozo.

Se isto não é suficiente para um partido que se dizia de esquerda (ainda diz?) fazer autocrítica, não sei o que ainda estava faltando. O Lula que explique, quando se dispuser a falar seriamente do assunto.

Até agora só disse bobagem, tipo "ajoelhar no milho", que nunca teve nada a ver com as autocríticas da esquerda. E pensar que muita gente de esquerda, ciente do que realmente representam as autocríticas para nós, andou endossando e repetindo esse besteirol!

Depois se irritam quando os comparamos aos bolsominions, outros que apoiam cegamente os absurdos zurrados por seu mito...

william leitão orth disse...

Bom dia Celso. Seria interessante ver que por coincidência essa madrugada o estilo e termo "assalto cangaço" chegou a São Paulo. Vítimas amarradas a carros, tiros , dinamite e mortos. Acabar com a PM, extinguir a "temida" ROTA. Se não fosse a PM, nós não sairíamos na rua, veja greve que ocorreu em Salvador a alguns anos. Desviei um pouco o foco porque o tópico do artigo seria o apoio da PM ao Bolsonaro. Essa madrugada os "especialistas de segurança" estavam em suas casas, o instituto sou da Paz, fechado. Enquanto isso a PM trocava tiros com assaltantes armados de 556, sigsauer etc. Infelizmente no país em que mais policiais morrem no mundo só o Bozo defende a Polícia. Abraço. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/08/30/quadrilha-ataca-banco-deixa-bombas-nas-ruas-e-faz-refens-em-aracatuba-sp.htm

celsolungaretti disse...

A esmagadora maioria dos países com o porte e a importância do Brasil já abandonou o policiamento urbano militarizado e obtém melhores resultados contra a bandidagem sem torturas, execuções sumárias e outras truculências características da atuação de nossas PM's.

Talvez porque neles os policiais são policiais e os bandidos são bandidos. No Brasil os dois universos estão muito misturados, então nunca se sabe se os bandidos mortos em confrontos pela polícia não passavam de concorrentes do bandidão que pagou aos policiais exterminadores para eliminarem a sua concorrência, como acontecia nos tempos dos esquadrões da morte.

Alessandro Alcântara disse...

Destacando sobre o trecho onde fala da frustração de Junho de 2013 e da extrema-direita mostrar-se mais combativa: uma coisa q percebi desde 2013 é como a esquerda não refuta e opta por ficar calada diante das acusações mentirosas da direita. Nunca entendi essa (falta de) atitude, se é por derrotismo ou preguiça, ou sei lá o quê, nem consigo imaginar um motivo. As esquerdas não conseguem refutar aquele bordão estúpido do "bandido bom bandido morto", preferiram ficar calados e deixar a direita fazer a festa. Não à tôa q hoje há as milícias digitais bostejando mil demências e as esquerdas em vez de criarem seus próprios robôs pra refutar, preferem lamentar muito nas redes sociais. E pô, não é difícil refutar, basta prática!

E em tempos de bolsonarismo, as esquerdas inicialmente falaram tanto de "resistência"... mas cadê? Ficaram é mais caladas e inertes q antes! Alguém ameaçou de golpe caso as esquerdas lutassem pra valer contra o Bozo, e não fiquei sabendo? Como é que com uma esquerda assim, vou resistir contra uma tentativa de golpe bolsonarista? Quero lutar, mas meus colegas pelo visto desistiram até da vida.

[Até hoje não agradeci o senhor e todos os demais por eu ter podido viver numa democracia na infância e adolescência. Caso a ditadura bolsonarista se concretize por completo, q ao menos eu possa lutar contra, para q meus sobrinhos (ou os filhos deles) não vivam numa ditadura - assistir de braços cruzados sem poder fazer nada é o pior dos mundos. Minha gratidão.]

celsolungaretti disse...

Blogger celsolungaretti disse...
Alexandre,

é por isso que há muito tempo considero imperativa a renovação da esquerda, com a incorporação e formação de novas gerações de revolucionários para substituir os que, na prática, se tornaram meros reformistas (querem apenas um capitalismo mais "bonzinho") e oportunistas (servem antes a si próprios, acumulando poder, privilégios e mordomias, do que ao povo que deveriam representar).

Ainda assim, como o bolsonarismo é economica e politicamente insustentável, tende a fracassar rotundamente. Mas não graças à esquerda, e sim porque quer ir em direção contrária à força predominante no poder econômico, a dos capitalistas que querem continuar exercendo sua exploração em médio e longo prazos.

Os vira-latas do capitalismo, que estão ao lado do Bozo, querem apenas ganhar rios de dinheiro rapidamente e se mandarem com o butim, deixando um rastro de destruição e terra arrasada atrás de si.

Apesar das conclusões apressadas de alguns scholars de esquerda, não são esses predadores bárbaros que predominam, então o Bozo tem os dias contados.

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