Quando fazia críticas de cinema e de música, eram muito frustrantes para mim as obras que começavam bem e terminavam bem mal. Por que o artista, faltando-lhe inspiração para concluir o trabalho adequadamente, não parou no que já estava feito, ao invés de acrescentar algo inferior e destoante?
Caso, p. ex., de Cachorro Urubu, que poderia ter sido a melhor de todas as canções do Raul Seixas se a última estrofe não ficasse tão aquém das outras duas, chegando a ser até pueril ("Eu sou índio sioux/ Eu sou cachorro urubu/ em guerra com Zéu").
E O rosto (1956) foi um dos poucos filmes do Ingmar Bergman a empolgar-me, ao mostrar artistas itinerantes colocando em pânico, com os truques e ilusões do seu ofício, os figurões preconceituosos de uma pequena cidade sueca... mas recuando covardemente e não levando até o fim a vingança contra os que tentaram humilhá-los.
O artigo Depois do mensalão teremos um vacinão? (vide aqui), do estimado companheiro Rui Martins, me causou idêntica decepção: foi perfeito até o final, mas os seis últimos parágrafos entornaram o caldo. Que desperdício!
Como o Rui bem relatou, o presidente que mais matou brasileiros em todos os tempos foi definitivamente desmascarado pelos depoimentos prestados à CPI da Pandemia. Estes comprovaram de forma cabal que não se deveu apenas à incompetência de Jair Bolsonaro e seus miquinhos amestrados o descontrole sanitário que maximizou os óbitos da covid-19, tendo havido sabotagem intencional por parte dessa corja de fanáticos ignorantes e obtusos.
Ademais, salta aos olhos que, enquanto não for expurgado o entulho humano que o genocida depositou nesse ministério –o que, contudo, não acontecerá enquanto o prevaricador permanecer no comando– a contagem de cadáveres continuará nas alturas.
Ou seja, o número real de mortes (a subnotificação na fonte deixa de fora 30% a 40% dos óbitos) já ronda 700 mil pessoas e umas 150 mil poderiam ter sido salvas sem o pandemônio causado, repito, premeditadamente, pelo prevaricador; então, se ele continuar com a faixa presidencial por mais alguns meses, não só chegaremos à casa de 1 milhão de mortos, como a ultrapassaremos em sabe-se lá quantas pessoas mais.
O fato é que, não se iludam, já superamos os 605 mil óbitos dos EUA e somos o país com maior número de vítimas fatais causadas pela pandemia no mundo inteiro. Mas o palhaço sinistro se ocupa mesmo é com a Cova América e não com a vala comum para onde vão tantos e tantos que, graças a ele, perderam uma competição muito mais importante: a luta pela sobrevivência.
Mas, não é só o morticínio virótico que torna imperativo e de uma urgência extrema o afastamento de Bolsonaro: não há hipótese nenhuma de ele tirar o Brasil da recessão econômica nem de deter a escalada da miséria e do desemprego.
Para desarmarmos a verdadeira bomba-relógio em que tamanha penúria se constitui, precisamos não só de uma diametral mudança de prioridades na política econômica, como também da boa vontade do resto do mundo e, em primeiro lugar, das nações economicamente dominantes; mas isto também não teremos enquanto der as cartas no Palácio do Planalto aquele que nos tornou párias da civilização.
De resto, a onda ultradireitista já morreu na praia (com a derrota de Donald Trump, principalmente), dando fim a qualquer esperança de o Brasil sair do fundo do poço com ajuda dos EUA. Terá de reerguer-se sozinho, começando pela retirada do bode pestilento da sala, ou afundar nesse buraco que não parece ter fim.
É cada dia maior o número de brasileiros para os quais a ficha vai caindo, daí a queda vertiginosa do prestígio do Bolsonaro, inclusive junto aos evangélicos.
E a suposição de que o Exército ou o centrão evitem seu bota-fora é ilusória. Os fardados querem mais evitar novos ataques à hierarquia militar e maiores danos à sua imagem; pouco a pouco, vão se dando conta de que o capitão que outrora expeliram está empenhado em humilhá-los e retaliá-los.
Quanto ao centrão, jamais cai junto com qualquer presidente, sustenta-o politicamente enquanto ele consegue ir prolongando sua agonia, mas, quando a queda se torna inevitável, transfere-se com armas e bagagens para a trincheira adversária.
Para encerrar, recomendo aos companheiros que deixem a sinistrose de lado e se preparem para a árdua, mas agradável, tarefa de reconstruírmos nosso país, pois não existe dúvida de que:
- o golpe de Estado que o Bozo não deu enquanto ainda podia (2019), agora ele morrerá sem dar;
- seu governo verdadeiramente já acabou e hoje ele não passa de um cadáver político aguardando o rabecão;
- como o fedor vai ficar cada vez pior, urge acelerarmos o fim do pesadelo convocando o povo para as ruas;
- as grandes manifestações populares eram o ingrediente que faltava para encerrarmos a temporada do circo de horrores, então sua chegada deve ser, para nós, motivo de júbilo e não de ubaldices paranóicas; e
- alarmismo desmobilizador é tudo de que não precisamos neste momento em que a vitória já está à vista. (por Celso Lungaretti)
"...não diga que a vitória está perdida/ se é de
batalhas que se vive a vida/ Tente outra vez"
P.S.: percebo agora ter esquecido um detalhe importante. O golpe de 1964 vinha sendo preparado há anos, foi tentado em 1961 e fracassou devido à posição firme do Leonel Brizola, e não dependeu tanto quanto a direita apregoa do Comício da Central do Brasil, já na reta final do esquema golpista.
Na verdade, o grande erro do Jango não foi ter radicalizado sua posição quando a vaca já estava indo para o brejo, mas sim haver demorado tanto para escolher seu lado, e isto porque acreditava, juntamente com o PCB, que os militares legalistas garantiriam o seu mandato. A ilusão de sempre.
Se desde o início tivesse impedido os oficiais conspiradores de promover expurgos nas Forças Armadas, ao transferirem para longe de suas bases os cabos e sargentos que haviam ajudado a abortar o golpe de agosto de 1961, e se não tivesse ficado tanto tempo em cima do muro, a história seria diferente.
Ou seja, o nosso lado estaria pronto para, ao menos, opor alguma resistência digna deste nome àquele golpe mais do que previsto: anunciado em prosa e verso. Ao invés de apaziguamento, Goulart precisava é ter exercido firmemente sua autoridade.
Não podemos repetir o erro. Indecisão, na hora em que é imperativo agir, costuma ser fatal. (CL)
2 comentários:
Pensei em pedir o "toque do editor", quando li o texto do Rui, pois me pareceu um pouco depressivo.
E olhe que é verão na Europa!
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O "toque" veio na forma de uma "voadora nos peitos".
O que é isso, companheiro?!
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Quanto as "ubaldices paranoicas" minha pouca cultura não permite alcançar o significado.
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Você está muito afiado de uns tempos para cá e tem acertado muito.
Os cenários que tem traçado estão se confirmando.
Tanto que, para corroborar, transcrevo um twitter/notícia que Leonardo Boff deu hoje de madrugada:
"Tenho uma suspeita feliz:o encontro do chefe da CIA com os militares do Governo é
para convencê-los a impedir que Bolsonaro tente um golpe. O Bolsonaro é tão ruim
que não presta nem para os mais reacionários do USA. Ele envergonha Biden que tem
preocupações com a Amazônia".
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Companheiro,
o blog é democrático e eu, como editor, jamais impediria o Rui de divulgar uma opinião que considerei profundamente equivocada.
Ao mesmo tempo, não poderia deixar no ar tão-somente um artigo que encarava a manifestação "Fora, Bolsonaro" deste sábado como o possível motivo para um golpe ultradireitista (ou seja, uma irresponsabilidade dos organizadores).
O jeito foi eu fazer um artigo que servisse de contraponto, para os leitores saberem que dois dos membros da equipe têm posições opostas. Quanto aos outros dois, poderão também se posicionar por escrito, caso o queiram fazer. O certo é que, neste ponto, não houve unanimidade na equipe.
Se eu exagerei na dose ("voadora nos peitos"), lamento. Foi só falta de jeito.
Quanto às "ubaldices paranoicas", foi a alusão a um personagem outrora célebre do cartunista Henfil: Ubaldo, o paranoico, sempre preocupado com a possibilidade de suas ações e frases, mesmo as mais inocentes, serem mal interpretadas pela ditadura militar.
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