terça-feira, 20 de julho de 2021

NEM 5 ANOS DEPOIS DA MORTE DE FIDEL, AS RUAS CLAMAM POR MENOS RIGIDEZ BUROCRÁTICA E MAIS QUALIDADE DE VIDA.

Segue a íntegra do artigo que lancei um dia após a morte de Fidel Castro. 

Serve para mostrar que uma explosão de insatisfação popular já era bem previsível, tendo a bola de neve crescido mais e mais desde então, até desencadear-se agora em julho.

E certamente vai repetir-se adiante, caso as respostas da nomenklatura no poder ao justificado inconformismo das massas não mudem diametralmente. 

O problema era e continua sendo o fato de a revolução não estar dando passos adiante, seja em termos de satisfazer às expectativas econômicas da maioria da população, seja na desmontagem desse aparato totalitário do Partido-Estado (veja aqui), que asfixia sobretudo as novas gerações. 

Os dirigentes atuais parecem ter esquecido lições que deveriam  ter bem claras em suas mentes, até por força da derrubada de Fulgencio Batista no alvorecer de 1959: a repressão só adia o inevitável, pois, como dizia Napoleão Bonaparte, baionetas servem para muitas coisas, menos para sentarmos sobre elas. (por Celso Lungaretti)
O OUTONO DO PATRIARCA CHEGA AO FIM
Fidel Castro, comandante da revolução cubana e principal dirigente do país durante 47 anos, faleceu na noite de 6ª feira, 25. 

Foi personagem marcante da segunda metade do século 20, mas sua estrela vinha se apagando desde o fim da União Soviética e do bloco socialista por ela encabeçado.

Em seguida foram suas forças físicas que declinaram, a partir da primeira hemorragia que sofreu em 2006, como consequência de uma doença nos intestinos.

Foi então que, sabendo-se impossibilitado de assumir uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total, ele, dignamente, trocou a farda pelo pijama. 

Havia liderado uma heroica revolução em 1958 e depois tentou romper o isolamento a que os Estados Unidos submeteram Cuba, incentivando guerrilhas similares noutros países do continente americano (enquanto Che Guevara tentava a sorte no Congo, igualmente em vão).

Fidel e o Che, no melhor momento de ambos.

O resultado acabou sendo o mais indesejado possível: a ocorrência de banhos de sangue e a proliferação de ditaduras direitistas, pois os EUA cuidaram ciosamente de evitar a propagação do mau exemplo no seu quintal. 

[Êxitos verdadeiros, Cuba só colheu em lutas de libertação nacional, ao ajudar, com tropas, munições e outros recursos, países africanos que confrontavam o colonialismo português.]

Curvando-se à evidência dos fatos, Castro foi obrigado a domesticar sua revolução para garantir-lhe a sobrevivência, ainda que desfigurada.

Desistiu de exportá-la e a institucionalizou, repetindo os mesmos desvios autoritários e burocráticos que engessaram a congênere soviética (a qual, com seu ímpeto transformador estancado, acabou sendo retirada de cena em 1989).

Aposentado compulsoriamente, Fidel durou até os 90 anos, mas os últimos dez não contam: tornara-se um inativo político.

Foi grande um dia, mas decerto não se interessava pelo rock, daí ter passado batido pelos conselhos de Pete Townshend (Prefiro morrer antes de envelhecer) e Neil Young (É melhor consumir-se em chamas/ do que definhar aos poucos").

O Che escutou: morreu na hora certa.

Os grandes se acertaram sem dar
a mínima para a opinião de Castro

SEU PERFIL ERA DE LIBERTADOR – Castro nunca pretendeu revolucionar o mundo, como Marx, Lênin ou Trotsky. Aspirava apenas a ser o libertador de Cuba, livrando-a da ditadura corrupta de Fulgêncio Batista, que fizera da ilha um centro de entretenimentos para turistas ricos interessados em prostituição, jogatina, canciones calientes, drogas... e anonimato.

Os tão alardeados paredóns (as execuções de inimigos, durante a guerra de guerrilhas e depois da tomada do poder) inserem-se perfeitamente na tradição sanguinária das rebeliões latino-americanas.

Até então, Fidel pouco mais era do que um caudilho típico da região, o filho de latifundiários que abraça a causa dos pobres e se torna seu general. Chegou a declarar enfaticamente que não havia comunismo nem marxismo em nossas ideias, só democracia representativa e justiça social.

A hostilidade exacerbada dos EUA ao novo governo acabou jogando-o nos braços da URSS, pois só a outra potência mundial poderia dar-lhe alguma chance de sobrevivência face ao poderoso vizinho que lhe impunha um embargo comercial, apoiava invasões armadas e promovia atentados terroristas (vários planos mirabolantes da CIA para matar ou desmoralizar Castro fracassaram).

A contrapartida ao guarda-chuva protetor foi a completa submissão da ilha às imposições soviéticas, com a adoção do modelo stalinista de socialismo num só país: economia totalmente estatizada, autoritarismo político e submissão da classe trabalhadora à burocracia que a deveria, isto sim, representar.

Aparentemente, Castro ainda tentou escapar dessa armadilha, ao concordar com os planos de Che Guevara para levar a revolução à África e, principalmente, levantar a América do Sul.

Com a execução a sangue-frio do Che e o extermínio dos principais movimentos revolucionários latino-americanos, Fidel teve de se conformar com o isolamento em relação a seus vizinhos e a dependência de um aliado distante e arrogante.
Um sucesso incontestável: o sistema de saúde cubano.

Ao monumental sapo engolido em 1962, quando Nikita Kruschev nem se deu ao trabalho de consultar Cuba antes de acertar com os EUA a desmontagem das bases de mísseis instaladas na ilha, seguiram-se outros, sempre indigestos e, ainda assim, digeridos.

Para compensar, Castro obtinha ajuda econômica que lhe permitiu oferecer condições de existência minimamente dignas para o conjunto da população, com destaque para as realizações marcantes em educação e saúde.

Se pessoas mais capazes e empreendedoras se ressentiam por estarem sendo impedidas de obter a condição diferenciada que seu potencial lhes asseguraria alhures, acabando por emigrar de um jeito ou de outro, é certo também que a grande maioria considerava sua situação melhor do que era antes.

Daí a gratidão e carinho que tributava a Fidel, apesar da falta de liberdade e da gestação de uma odiosa nomenklatura, reproduzindo a distorção soviética: onde todos deveriam ser iguais, a burocracia partidária e governamental concedia privilégios indevidos aos seus membros, tornando-os mais iguais.

Cubanos debandando, a imprensa burguesa adorando...

APÓS O FIM DA URSS, A AGONIA LENTA – A situação, que começara a mudar com a Perestroika, tornou-se crítica após a derrubada do muro de Berlim e o fim do socialismo real no Leste europeu.

Ao deixar de ser sustentada pela URSS, que lhe injetava recursos e a utilizava como um cartão postal do (que ela pretendia ser o) comunismo, Cuba atravessou uma gravíssima crise econômica, até reaprender a andar por suas próprias pernas. 

Daí as fugas da ilha com barcos improvisados terem chegado ao auge na década de 1980, para júbilo da mídia ocidental. Até o remake de Scarface (d. Brian De Palma, 1983) a incluiu, embora o gangster do filme original (d. Howard Hawks, 1932) nada tivesse a ver com Cuba.

O pior momento acabou passando, mas os tempos heroicos também. O povo cubano não era o mesmo que se orgulhava de haver reconquistado sua dignidade, com a ilha deixando de ser bordel dos estadunidenses. Tais lembranças haviam se tornado muito distantes. E a penúria, muito presente.

Então, o debilitamento da saúde de Fidel veio a calhar para que Raúl Castro, governante menos carismático mas também menos identificado com excessos do passado, lançasse e fosse implementando sua versão de abertura lenta, gradual e segura.

2013: sua última aparição pública.
[O paralelo irônico com a flexibilização do regime militar brasileiro sob Ernesto Geisel procede, pois a intenção de Raúl é ir normalizando pouco a pouco suas relações econômicas com os países capitalistas.

Quanto a Fidel, acabou tendo seu destino atrelado à bipolarização do poder mundial, que, enquanto durou, permitiu-lhe inflar demais o balãozinho cubano. Mas os ventos mudaram e, no fim da linha, o esperava a agonia lenta.

Em circunstâncias quase sempre dificílimas, Castro fez o melhor que pôde por seu povo e seu país – não pelo marxismo ou pela revolução mundial, que nunca foram suas verdadeiras devoções.

Quando se puder avaliar seu papel sem exageros propagandísticos e tiroteios ideológicos, deverá ser reconhecida, sobretudo, sua vontade inquebrantável, que o fez ser reconhecido como um titã, apesar da ínfima importância geopolítica da nação que representava.

O século 20 finalmente terminou. E o atual, em termos de grandes personagens históricos, é um deserto. (CL) 

2 comentários:

SF disse...

Já disse que gosto de palavras?

Apresento-lhe uma que acho muito bonita e pertinente a Cuba.

SÚCIA

Emblemática e definitiva definição de governo, tanto lá como cá.

Aqui significa "reunião de pessoas de má índole" e lá "suja" pura e simplesmente.

Como se vê, a língua de Camões define o governo cubano em um único vernáculo.
Já no idioma de Cervantes, falado na ilha maravilha (e suja) dos Castros castradores, apenas murmura-se entredentes "sucios"! Ou "cosa sucia".

Logo, uma cara que participou disso é sujeira, mano!

***

Obviamente, sendo eu nativo e legitimado brasileiro, um povo macunaímico, nunca entendi o fascínio que esta súcia provoca nos abestados daqui.

Muita saúva e pouca saúde os males do mundo são.

Ipse dixit.

celsolungaretti disse...

Indiscutivelmente, a situação do povo melhorou nas primeiras décadas de revolução. Mas, era inevitável que ela se descaracterizasse caso não desse passos à frente. O Che, que era um autêntico revolucionário, bem que tentou, ao preço de sua vida.

O Fidel, que tinha índole de um mero libertador (diferença nunca percebida ou levada em conta pela esquerda festiva brasileira), deixou que o Che se arrebentasse e depois fez o que queria mesmo fazer: garantiu a sobrevivência do regime cubano e não fez mais esforços sérios para espalhar a revolução pelo mundo.

Ela sobreviveu, descaracterizou-se, tornou-se um péssimo exemplo (devido ao autoritarismo chocante) se tornou um ótimo trunfo para a propaganda inimiga: casa da sogra na qual a URSS instalava mísseis quando queria e retirava quando queria, censora de blogueiras, sequestradora de pugilistas (com a cumplicidade vergonhosa do Brasil), exportadora de escória para os EUA, etc.

Quem não tem verdadeiros propósitos revolucionários e apenas quer aparecer bem na foto da sociedade atual, acha uma gracinha essas lambanças. Eu as vejo como fornecimento de matéria-prima para a imprensa burguesa achincalhar os processos revolucionários.

Related Posts with Thumbnails