Serve para mostrar que uma explosão de insatisfação popular já era bem previsível, tendo a bola de neve crescido mais e mais desde então, até desencadear-se agora em julho.
E certamente vai repetir-se adiante, caso as respostas da nomenklatura no poder ao justificado inconformismo das massas não mudem diametralmente.
O problema era e continua sendo o fato de a revolução não estar dando passos adiante, seja em termos de satisfazer às expectativas econômicas da maioria da população, seja na desmontagem desse aparato totalitário do Partido-Estado (veja aqui), que asfixia sobretudo as novas gerações.
Foi personagem marcante da segunda metade do século 20, mas sua estrela vinha se apagando desde o fim da União Soviética e do bloco socialista por ela encabeçado.
Em seguida foram suas forças físicas que declinaram, a partir da primeira hemorragia que sofreu em 2006, como consequência de uma doença nos intestinos.
Foi então que, sabendo-se impossibilitado de assumir uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total, ele, dignamente, trocou a farda pelo pijama.
Havia liderado uma heroica revolução em 1958 e depois tentou romper o isolamento a que os Estados Unidos submeteram Cuba, incentivando guerrilhas similares noutros países do continente americano (enquanto Che Guevara tentava a sorte no Congo, igualmente em vão).
Fidel e o Che, no melhor momento de ambos. |
O resultado acabou sendo o mais indesejado possível: a ocorrência de banhos de sangue e a proliferação de ditaduras direitistas, pois os EUA cuidaram ciosamente de evitar a propagação do mau exemplo no seu quintal.
[Êxitos verdadeiros, Cuba só colheu em lutas de libertação nacional, ao ajudar, com tropas, munições e outros recursos, países africanos que confrontavam o colonialismo português.]
Curvando-se à evidência dos fatos, Castro foi obrigado a domesticar sua revolução para garantir-lhe a sobrevivência, ainda que desfigurada.
Desistiu de exportá-la e a institucionalizou, repetindo os mesmos desvios autoritários e burocráticos que engessaram a congênere soviética (a qual, com seu ímpeto transformador estancado, acabou sendo retirada de cena em 1989).
Aposentado compulsoriamente, Fidel durou até os 90 anos, mas os últimos dez não contam: tornara-se um inativo político.
Foi grande um dia, mas decerto não se interessava pelo rock, daí ter passado batido pelos conselhos de Pete Townshend (Prefiro morrer antes de envelhecer) e Neil Young (É melhor consumir-se em chamas/ do que definhar aos poucos").
O Che escutou: morreu na hora certa.
Os grandes se acertaram sem dar a mínima para a opinião de Castro |
SEU PERFIL ERA DE LIBERTADOR – Castro nunca pretendeu revolucionar o mundo, como Marx, Lênin ou Trotsky. Aspirava apenas a ser o libertador de Cuba, livrando-a da ditadura corrupta de Fulgêncio Batista, que fizera da ilha um centro de entretenimentos para turistas ricos interessados em prostituição, jogatina, canciones calientes, drogas... e anonimato.
Os tão alardeados paredóns (as execuções de inimigos, durante a guerra de guerrilhas e depois da tomada do poder) inserem-se perfeitamente na tradição sanguinária das rebeliões latino-americanas.
Até então, Fidel pouco mais era do que um caudilho típico da região, o filho de latifundiários que abraça a causa dos pobres e se torna seu general. Chegou a declarar enfaticamente que não havia comunismo nem marxismo em nossas ideias, só democracia representativa e justiça social.
A hostilidade exacerbada dos EUA ao novo governo acabou jogando-o nos braços da URSS, pois só a outra potência mundial poderia dar-lhe alguma chance de sobrevivência face ao poderoso vizinho que lhe impunha um embargo comercial, apoiava invasões armadas e promovia atentados terroristas (vários planos mirabolantes da CIA para matar ou desmoralizar Castro fracassaram).
A contrapartida ao guarda-chuva protetor foi a completa submissão da ilha às imposições soviéticas, com a adoção do modelo stalinista de socialismo num só país: economia totalmente estatizada, autoritarismo político e submissão da classe trabalhadora à burocracia que a deveria, isto sim, representar.
Um sucesso incontestável: o sistema de saúde cubano. |
Para compensar, Castro obtinha ajuda econômica que lhe permitiu oferecer condições de existência minimamente dignas para o conjunto da população, com destaque para as realizações marcantes em educação e saúde.
Se pessoas mais capazes e empreendedoras se ressentiam por estarem sendo impedidas de obter a condição diferenciada que seu potencial lhes asseguraria alhures, acabando por emigrar de um jeito ou de outro, é certo também que a grande maioria considerava sua situação melhor do que era antes.
Daí a gratidão e carinho que tributava a Fidel, apesar da falta de liberdade e da gestação de uma odiosa nomenklatura, reproduzindo a distorção soviética: onde todos deveriam ser iguais, a burocracia partidária e governamental concedia privilégios indevidos aos seus membros, tornando-os mais iguais.
Cubanos debandando, a imprensa burguesa adorando... |
APÓS O FIM DA URSS, A AGONIA LENTA – A situação, que começara a mudar com a Perestroika, tornou-se crítica após a derrubada do muro de Berlim e o fim do socialismo real no Leste europeu.
Ao deixar de ser sustentada pela URSS, que lhe injetava recursos e a utilizava como um cartão postal do (que ela pretendia ser o) comunismo, Cuba atravessou uma gravíssima crise econômica, até reaprender a andar por suas próprias pernas.
Daí as fugas da ilha com barcos improvisados terem chegado ao auge na década de 1980, para júbilo da mídia ocidental. Até o remake de Scarface (d. Brian De Palma, 1983) a incluiu, embora o gangster do filme original (d. Howard Hawks, 1932) nada tivesse a ver com Cuba.
O pior momento acabou passando, mas os tempos heroicos também. O povo cubano não era o mesmo que se orgulhava de haver reconquistado sua dignidade, com a ilha deixando de ser bordel dos estadunidenses. Tais lembranças haviam se tornado muito distantes. E a penúria, muito presente.
Então, o debilitamento da saúde de Fidel veio a calhar para que Raúl Castro, governante menos carismático mas também menos identificado com excessos do passado, lançasse e fosse implementando sua versão de abertura lenta, gradual e segura.
2013: sua última aparição pública. |
Quanto a Fidel, acabou tendo seu destino atrelado à bipolarização do poder mundial, que, enquanto durou, permitiu-lhe inflar demais o balãozinho cubano. Mas os ventos mudaram e, no fim da linha, o esperava a agonia lenta.
Em circunstâncias quase sempre dificílimas, Castro fez o melhor que pôde por seu povo e seu país – não pelo marxismo ou pela revolução mundial, que nunca foram suas verdadeiras devoções.
Quando se puder avaliar seu papel sem exageros propagandísticos e tiroteios ideológicos, deverá ser reconhecida, sobretudo, sua vontade inquebrantável, que o fez ser reconhecido como um titã, apesar da ínfima importância geopolítica da nação que representava.
O século 20 finalmente terminou. E o atual, em termos de grandes personagens históricos, é um deserto. (CL)
2 comentários:
Já disse que gosto de palavras?
Apresento-lhe uma que acho muito bonita e pertinente a Cuba.
SÚCIA
Emblemática e definitiva definição de governo, tanto lá como cá.
Aqui significa "reunião de pessoas de má índole" e lá "suja" pura e simplesmente.
Como se vê, a língua de Camões define o governo cubano em um único vernáculo.
Já no idioma de Cervantes, falado na ilha maravilha (e suja) dos Castros castradores, apenas murmura-se entredentes "sucios"! Ou "cosa sucia".
Logo, uma cara que participou disso é sujeira, mano!
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Obviamente, sendo eu nativo e legitimado brasileiro, um povo macunaímico, nunca entendi o fascínio que esta súcia provoca nos abestados daqui.
Muita saúva e pouca saúde os males do mundo são.
Ipse dixit.
Indiscutivelmente, a situação do povo melhorou nas primeiras décadas de revolução. Mas, era inevitável que ela se descaracterizasse caso não desse passos à frente. O Che, que era um autêntico revolucionário, bem que tentou, ao preço de sua vida.
O Fidel, que tinha índole de um mero libertador (diferença nunca percebida ou levada em conta pela esquerda festiva brasileira), deixou que o Che se arrebentasse e depois fez o que queria mesmo fazer: garantiu a sobrevivência do regime cubano e não fez mais esforços sérios para espalhar a revolução pelo mundo.
Ela sobreviveu, descaracterizou-se, tornou-se um péssimo exemplo (devido ao autoritarismo chocante) se tornou um ótimo trunfo para a propaganda inimiga: casa da sogra na qual a URSS instalava mísseis quando queria e retirava quando queria, censora de blogueiras, sequestradora de pugilistas (com a cumplicidade vergonhosa do Brasil), exportadora de escória para os EUA, etc.
Quem não tem verdadeiros propósitos revolucionários e apenas quer aparecer bem na foto da sociedade atual, acha uma gracinha essas lambanças. Eu as vejo como fornecimento de matéria-prima para a imprensa burguesa achincalhar os processos revolucionários.
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