segunda-feira, 28 de junho de 2021

UM PASSADO QUE NÃO QUER MORRER: OS INFORTÚNIOS DE BATTISTI NOS REAVIVAM AS LEMBRANÇAS DOS ANOS DE CHUMBO

Battisti preso 4 décadas atrás: naquele tempo,
uns 600 grupos como o dele atuavam na Itália
H
á uma curiosa tendência de, nas artes e na vida real, se repetirem certos dramas dramas dos prisioneiros políticos.

[Jamais deixarei de considerar Cesare Battisti como tal, pois Silvio Berlusconi fez dele o alvo de uma vendetta extemporânea, tanto que hoje ele está cumprindo uma sentença de prisão perpétua que caducou já na década passada!]

Se puxasse pela memória me lembraria de outros episódios, mas eis alguns.

No conto O muro (1939), de Jean-Paul Sartre, um comunista torturado pela polícia revela que o encontro dos membros de sua célula seria num cemitério (que costumavam mesmo utilizar para tanto, só que, daquela vez, o local escolhido fora outro). 

Ou seja, fingia estar colaborando com a repressão, mas a encaminhava para onde nada encontraria, além de o artifício eventualmente chamar a atenção e servir para alertar os camaradas de que ele estava preso. Só que, para sua infelicidade, o local do ponto havia sido trocado à última hora... para o cemitério!

Acaso infeliz, que me lembra o ponto falso aberto por um militante da luta armada (diante da Galeria Alaska, em Copacabana), local em que os agentes do DOI-Codi achariam, isto sim, um membro do partidão. Este ainda viu a repressão chegando e tentou escapulir discretamente, mas deixou cair uma pasta cheia de panfletos, que se espalharam pelo chão e o delataram.
Melville (capa branca) com Paul Meurisse e Simone
Signoret quando filmavam O exército das sombras

Semelhança mais completa foi a de um trecho de
O exército das Sombras (1969), filmaço no qual o diretor e co-roteirista Jean-Pierre Melville enxertou algumas de suas lembranças da Resistência Francesa, da qual havia participado. 

A certa altura, mostra um maquis desembarcando numa estação de trem e a encontrando tomada pelos nazistas, que estavam revistando os passageiros. Mas, percebendo uma mãe atrapalhada com a criança e a bagagem que carregava, abre um sorriso caloroso, pega a criança e a carrega nos braços, como qualquer pai carinhoso faria. 

Na barreira policial, os agentes, supondo tratar-se de uma família inofensiva, não o revistam, deixando de encontrar a arma que ele trazia sob o braço.

No mesmíssimo ano de 1969, o companheiro José Raimundo da Costa (o Moisés), dirigente da VPR, se viu em idêntica situação ao desembarcar numa cidade do interior paulista onde houvera uma passeata e lhe veio também a inspiração de utilizar tal escapatória. Deu certo.

No filme Chove sobre Santiago (1975), de Helvio Soto, durante a onda de repressão imediatamente posterior ao golpe de Pinochet, um jovem militante esquerdista, num grupo de uns vinte que estão sendo revistados na rua, é aconselhado por um oficial fascista a tentar escapar, aproveita que ninguém está olhando. Ele acredita, corre e recebe uma rajada de metralhadora nas costas.
Hábil, o Moisés conseguiu driblar
por 7 anos os agentes da repressão



Não fui tão ingênuo assim. Levado certa vez a uma área rural, um oficial entediado, deitado numa rede, me deu o mesmo conselho. Respondi-lhe que, se queria me matar, atirasse pela frente e não pelas costas. Não tenho dúvidas de que, se corresse, não estaria mais vivo. Era tudo de que ele precisava para justificar-se depois com os seus superiores, após assassinar-me pelo simples prazer de matar.

Estas reminiscências me vieram à mente por causa do post anterior, sobre o Battisti ter saído de uma prisão infernal graças à intervenção de alguém importante, feita um dia antes. Muitos detalhes coincidem com um episódio que aconteceu comigo em meados de junho de 1970.

Depois de dois meses de incomunicabilidade e tortura, passei a ser espancado por mera retaliação, pois os analistas do DOI-Codi concluíram, acertadamente, que eu sabia da existência de uma segunda unidade de ação armada da VPR no Rio de Janeiro, a qual, sobrevivendo intacta à onda de prisões do mês de abril/1970, somou forças com a ALN para sequestrarem o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried von Holleben.

Foi um vexame para os torturadores do DOI-Codi, que haviam feito seus superiores crerem que a VPR fora definitivamente desmantelada no RJ.  E eles descarregaram a raiva em mim, ao perceberem que eu os havia iludido.

O coronel responsável pelo IPM da VAR-Palmares, que era de outra unidade, veio me ouvir na Barão de Mesquita para encerrar o seu inquérito, já que eu nele era citado. Pura formalidade. Mas um dos piores torturadores do DOI-Codi (provavelmente major) me viu sentado e tão transtornado ficou que me atirou longe com um tapão pelas costas. Aí a cadeira virou e a mesa se chocou com o coronel. 

Este considerou o ocorrido uma afronta à sua patente superior (pois eu estava sob sua guarda naquele momento) e foi discutir aos berros com meu agressor no corredor. 

Pensei que me caíra dos céus uma chance de ser transferido para uma unidade normal, então, quando o coronel voltou, eu lhe disse: Está vendo? Se eu continuar aqui, vão me matar.
Sequestro do embaixador alemão levou à libertação de 40 companheiros
Meu cálculo foi bom: ele realmente levou o caso adiante, até porque queria vingar-se do desrespeito que sofrera.

O desfecho, no entanto, não foi aquele com o qual eu sonhava: transferiram-me sim, logo no dia seguinte... mas para a PE da Vila Militar. 

O grupo de torturadores dessa unidade estava mais para quadrilha de bandidos e rapinantes, tanto que adiante seria preso pelo próprio Exército por disputar à bala o  mercado com os contrabandistas da região. 

Naquele momento, eles tentavam a todo custo recuperar o direito de caçar militantes da luta armada para receber recompensas dos empresários fascistas e também para poderem roubar tudo de valor que encontrassem conosco.

Ou seja, pulei da frigideira para o fogo, o que me acarretou, inclusive, um tímpano estourado.

Torço para que o Cesare tenha melhor sorte. (por Celso Lungaretti)

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