quarta-feira, 23 de junho de 2021

CESARE BATTISTI: DEPOIS DA FUGA SEM FIM PELO MUNDO AFORA, AS ARBITRARIEDADES SEM FIM NA PIOR PRISÃO DA ITÁLIA

A
revista Forum publicou na semana passada a tradução (vide aqui) de uma longa carta de Cesare Battisti, na qual o escritor, entre outras arbitrariedades cometidas pelo Estado italiano, se queixa de estar em isolamento prisional há 20 meses, dos quais apenas seis foram em estado de semilegalidade [todos os trechos em azul são palavras de Battisti], daí seu inconformismo:
"Não se pode punir ou vingar aplicando a um veterano dos anos 70 o status de prisioneiro de guerra".
O documento foi publicado pelo jornal italiano Carmilla on line e traduzido para o português por Alessandro Peregalli e Rodrigo Ardissom Souza.

Faltou a IstoÉ citar o companheiro Carlos Lungarzo
Recomendando aos leitores que o acessem e leiam na íntegra, destaco algumas passagens (por Celso Lungaretti):
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O PRESENTE, NA PIOR PRISÃO CALABRESA
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Em resposta a pedidos formais por motivos de tratamento desumano, citando medidas de segurança sem precedentes, que, além disso, têm sido aplicadas retroativamente há 41 anos, o Estado responde literalmente: "a documentação solicitada foi retida do seu direito de acesso". Mas, então nos perguntamos, qual é a possível defesa? Esta é a razão pela qual entrei em greve de fome em Oristano [penitenciária de segurança máxima na ilha da Sardenha].

Em resposta, o Estado raivoso me transferiu para a pior prisão da Itália [na região da Calabria], me colocando à força na seção ISIS-AS2 [destinada a terroristas]. Isso, apesar das ameaças recebidas no passado e no presente, proferidas pelas diferentes frentes jihadistas contra mim. 

Mas se Cesare Battisti foi designado pela autoridade judicial para a segurança média e não ao orgastolo ostativo [1], o que ele está fazendo na AS2? 

Minha presença na seção ISIS implica grandes dificuldades e pequenas margens de sobrevivência:
— sem nunca sair da cela para a banho de sol;
— limitando também na comida, já que são do ISIS os trabalhadores que a distribuem; 
Quando Berlusconi relançou a caça a Battisti, ele já
não tinha atuação política e se ocupava da carreira...
— 
objeto de ameaças através do portão da grade; 
— privado de computador no qual eu pudesse exercer a minha profissão; 
— vigiado na frente e objeto de CED [medida disciplinar] a cada pequena reclamação; 
— sujeito à censura, sob a alegação de suposta atividade subversiva e assim por diante, até ser impedido também no direito de defesa, estabelecido pelo artigo 24 da Constituição. 

Eu poderia encontrar meus familiares italianos uma hora por semana, quatro vezes por mês, mas, dada a distância do meu local de residência e a idade avançada dos meus irmãos, que varia de 70 a 80 anos, isso raramente acontece. 

Minha família, que vive na França e no Brasil, só posso contatá-la com chamadas de vídeo no meu celular uma vez por semana, mas então tenho que desistir das visitas presenciais. Desta forma, passo meses sem contato com meus filhos, para os quais tenho de pedir notícias por carta, quase sempre retidas pela censura porque estão escritas numa língua estrangeira. 

Disseram-me até mesmo que meus filhos deveriam aprender a escrever em italiano para receber notícias de seu pai. Isto porque o censor tem dificuldade com o francês ou o português, que são as línguas maternas dos meus filhos. Esse é um tratamento desumano não só para qualquer prisioneiro, mas especialmente para alguém cujo último crime data de 41 anos atrás. 

...e da vida familiar da qual foi privado por
longos períodos de sua sofrida vida.
  
E como se isso não fosse suficiente, o governo me mantém enquadrado num nível absurdo de periculosidade, alimentando um processo de criminalização constante a ponto de poder justificar a apreensão do meu computador, no qual eu estava completando um romance sobre um conflito em Rojava e o drama dos imigrantes
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NO PASSADO, TRAÍDO POR EVO MORALES
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As autoridades italianas nunca aceitaram meu refúgio no Brasil. O Estado trabalhou com todas as suas forças, mas também com meios ilícitos como a corrupção e a oferta de privilégios políticos e econômicos, para obter a minha entrega fraudulenta a todo custo! 

...A Itália, através da embaixada, sempre manteve relações privilegiadas com os lobbies militares próximos a Bolsonaro. A ponto de empurrar as empresas ítalo-brasileiras a entrar ativamente na campanha presidencial de Bolsonaro. Em troca de tal amizade, Bolsonaro prometeu minha extradição. 

Embora a Constituição o impedisse de fazê-lo – você não pode revogar um decreto após 5 anos de sua emissão – Bolsonaro manteve sua promessa. Por meio de compra e venda de influência na Supremo Tribunal Federal, foi desavergonhadamente ignorada a Constituição e o estatuto de prescrição dos crimes atribuídos a mim e, em dezembro de 2018, decretada a ordem de extradição.

O governo de esquerda cessante me garantiu contato direto com o presidente da Bolívia, Evo Morales, que pessoalmente permitiu que o fundador do MST, João Pedro Stédile, me recebesse na Bolívia com a concessão de refúgio político. 
Depois de Guevara, Battisti: a traição parece ter
virado uma tradição dos presidentes bolivianos!
Numa operação combinada entre o Partido dos Trabalhadores brasileiro e o Movimento ao Socialismo boliviano, fui transferido para Santa Cruz de la Sierra e lá entregue a um emissário do governo, empregado direto do chanceler. 

Enquanto esperava a papelada para refúgio, fui alojado num centro de monitoramento: instalações pertencentes ao Ministério do Interior, que serviram de base para espionagem da oposição à Evo Morales! Uma dúzia de operadores de informática trabalharam lá... 

Tive imediatamente a impressão de que estava sendo observado a cada passo, não apenas por forças supostamente amigáveis.... 

Quando eu já tinha a certeza de que havia algo errado, fui pego a alguns passos do centro, enquanto ia às compras. De repente, todos aqueles a quem eu havia sido apresentado para a regularização do asilo tinham desaparecido.

Mesmo assim, eu não perdi as esperanças. Claramente pensei na traição de Evo Morales, mas ainda assim contava com as leis bolivianas que excluem a extradição por delitos políticos e, especialmente no meu caso, por estar prescrito de acordo com as leis bolivianas... 

...eu deveria ter suspeitado que o que a Itália queria evitar era exatamente um julgamento regular. Os próprios policiais bolivianos da Interpol, alguns dos quais eu tinha encontrado no centro de monitoramento, pareciam bastante envergonhados com o que estava prestes a acontecer. Eles não tiveram dificuldade em me informar que ali tinha um monte de italianos, brasileiros e agentes de outro país que eles não quiseram especificar. 

Não terá a Interpol nada mais importante com que
ocupar-se além de vendettas extemporâneas?
Eles me disseram claramente que minha pele estava sendo negociada e chamavam seus governantes de malandros. Entendi o que estavam falando na manhã seguinte, quando uma equipe trajada de negro e com capuzes entrou e me levou para o aeroporto internacional de Santa Cruz de la Sierra.

Colocado e guardado em uma sala de cujas janelas se via a pista (...) por um momento tive a esperança de que Evo Morales houvesse dado uma contraordem. Uma esperança fugaz, até a chegada de um grande grupo de pessoas com cores italianas no pescoço, que me levou ao avião oficial que nos esperava muito longe na pista de pouso. 

Eu até tentei resistir: É um sequestro, gritei. A resposta foi desarmante: E daí? Mas desta vez funcionou.
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MAIS PASSADO: A ADMISSÃO DE CULPA
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Pensei seriamente numa solução coletiva dos nossos anos 70. O clima político na Itália não era o ideal, mas eu sabia da existência de personalidades e tendências dentro do mundo judiciário que, tendo lutado na linha de frente na guerra contra o terrorismo – como dizem hoje em dia – conheciam bem o assunto e não tinham interesse em recorrer à propaganda obscurantista para entender a realidade dos fatos. 

Certas pistas me disseram que estas pessoas, ou correntes de pensamento, ainda esperavam que um dia pudéssemos virar estas tristes páginas da história com dignidade e respeito pela memória nacional... 
Battisti não é Cristo, mas foi traído por um Judas 
boliviano e negado por um Pedro brasileiro...
...Movido por este sentimento, alimentado pela esperança de que 40 anos eram muito tempo e que a democracia italiana tinha de haver amadurecido e que o Estado também era um administrador forte e responsável, decidi confiar na justiça e chamei o promotor de Milão. 

Aquela meu depoimento em 23 de março de 2019 foi uma escolha dolorosa. Estava longe da Itália desde 1981, e meus contatos com o bel paese [belo país, ou seja, a Itália] eram reduzidos a poucos membros da família e ao editor. Não podia imaginar que, além da histeria da mídia, eu ainda pudesse despertar a vingança do Estado. 

Com a enorme dificuldade de ter de voltar a um julgamento que havia sido arquivado por décadas, sem nenhum fato novo para contribuir, exceto pelas ressalvas agora impossíveis sobre minhas próprias responsabilidades. 

Não me restava nada a fazer a não ser tomar o pacote completo, porém, criminalmente, não teria peso. Diante da escolha de enfrentar um julgamento histórico, e eu não fui o único a acreditar nisso, que sentido teria em mergulhar no código penal 40 anos depois?

Fui condenado a duas penas perpétuas e seis meses de prisão solitária por ter sido considerado culpado de praticamente todos os crimes cometidos pelo PAC [ele admitiu a autoria de duas mortes, mas não a das outras que arrependidos atiraram nas suas costas], incluindo quatro atentados mortais. Onde a minha presença física no local do crime não podia ser provada, fui considerado o instigador...

Eu admiti tudo. Reiterei minha autocrítica pela escolha de ter participado da luta armada, porque foi política e humanamente desastrosa. Mas eu não o tinha dito mil vezes ao longo de todos estes anos?

Terá ainda Battisti tempo e chance para ser feliz?
Não tinha nada a arrepender-me porque, errado ou não, não se pode mudar com uma visão a posteriori o significado de eventos historicamente definidos por um contexto social específico. 

Seria absurdo dizer que não poderia ter sido evitado, mas sei que o movimento revolucionário não se esquivou de assumir suas responsabilidades. Não podemos dizer o mesmo por parte do Estado. 

Também não tinha nada a pedir em troca de minha confissão. Não teria sido legalmente exigido e bastava para mim que tivesse sido aplicada a lei, como para qualquer outro condenado sem o terrível ergastolo ostativo, para ter acesso a algum benefício futuro reservado a todos.

Em resumo, é como dizer, tudo bem, vocês ganharam e eu estou aqui para testemunhar os cantos de vitória imerecida. Mas, uma vez terminada a festa, caro Estado democrático, vamos todos nos comprometer a reabilitar a história violada, enquanto eu cumpro minha sentença, de acordo com os termos das leis nacionais e das regras internacionais da humanidade como qualquer outro condenado

Pura ilusão. Depois de ter ostentado para o mundo inteiro o fruto de uma caçada suja, cantado uma vitória obtida por engano sobre o sangue das vítimas e a honra barrada da História, o Estado dos remendos não se contradiz e mostra sua verdadeira face. Ela se entrega aos bócios da forca, cavalga a onda populista, sacrifica até mesmo a palavra das autoridades que a serviram, mesmo quando não a mereciam.

Este é o sentimento que me acompanhou de Oristano a Guantanamo Calabro, à mercê do ISIS e submetido a um tratamento digno de uma ditadura militar. Mas não perdi a esperança e estou certo de que a justiça e a verdade prevalecerão.
Para encerrar com um vislumbre de esperança, o Tribunal de Milão reconheceu em maio/2021
a prescrição da sentença de Luigi Bergamin, cuja situação legal era idêntica à de Battisti
  
[1] uma tradução aproximada é
prisão perpétua hostil, que não concede qualquer tipo de benefício ou recompensa para a pessoa condenada. Infligida a indivíduos altamente perigosos, recebeu o apelido de fim da sentença, nunca!.

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