sábado, 22 de maio de 2021

DILMA E O GOLPE QUE NÃO HOUVE

Foi tão patética a sessão dominical em que a Câmara
autorizou o início do processo de impeachment...
 
A
narrativa que fez  o impeachment sofrido por Dilma Rousseff em 2016 passar por golpe de Estado volta e meia ressurge nas redes sociais. 

Embora já tenha sido largamente esquecido pela cúpula petista, ele parece ainda ter a função de galvanizar apoiadores e simpatizantes do lulopetismo. 

Hoje conseguimos visualizar melhor qual era o propósito de tal versão fantasiosa. Tinha objetivo duplo:
1. por um lado, blindar o lulopetismo da obrigação de analisar criticamente os longos 13 anos de ocupação da presidência da República e por que, afinal, o fim havia sido tão melancólico; 
2pelo outro, mistificar a lógica própria do sistema político burguês e impedir o povo de entender que tal sistema é apenas e tão somente um biombo legal das vontades e interesses da burguesia. Na realidade, os dois objetivos se casam num só, que é o retorno do lulopetismo ao poder. 

Ao negar a crítica, o lulopetismo assumia-se enquanto vitorioso e infalível. E, ao mistificar a institucionalidade, conseguia fazer com que o povo continuasse a ter fé no sistema político. Ou seja, o resumo da ópera seria: o lulopetismo foi vítima de uma trapaça de alguns homens maus e tudo poderá ser corrigido caso ele volte ao poder. 

No entanto, gostaria aqui de esclarecer porque Dilma não foi vítima de golpe nenhum, mas apenas sofreu o piparote da burguesia dentro da mais normal das institucionalidades; e que a natureza da institucionalidade enquanto síntese dos interesses da burguesia explica porque ela foi derrubada e Bolsonaro, não. 

Para tanto, é preciso começar esclarecendo que a política não é o encontro do diverso, a administração do comum, o diálogo de opostos ou qualquer outra asneira vendida por filósofos mercadores de ilusões. A política é a luta de classes e frações de classes. Sobretudo, a política é exercício da opressão da classe dominante sobre a dominada. 
...que o momento mais lembrado hoje em dia é o
da cusparada que Jean Willys deu no Bolsonaro.

O Estado não é a universalidade social, mas o comitê de negócios da burguesia, (Manifesto do Partido Comunista, 1848), uma estrutura cujo objetivo é manter a propriedade privada e o acúmulo de capital. 

O congresso nacional, a justiça, a presidência, a constituição, tudo isso existe para manter o poder e o acúmulo de riquezas da burguesia. Conforme, ainda, Marx (Glosas Críticas Marginais, 1844), o Estado nunca conseguirá resolver os problemas da sociedade porque ele é fundado na propriedade privada e nela encontra seu limite de atuação. Limite e sentido de existência.

Os partidos competem entre si para chegar à testa do Estado e cada partido é apenas a síntese de facções da burguesia em luta pelo acúmulo do capital. O parlamento é o locus de unificação das facções, onde, mediante o debate, a burguesia chega a um denominador comum. Essencialmente, o poder político visa garantir a propriedade privada e a acumulação capitalista, sendo, portanto, apenas um instrumento da verdadeira força material da sociedade: a burguesia.

As regras da política não são normas racionais, valores a priori, naturais, sagrados, metafísicos ou éticos. São regras determinadas pela burguesia visando seus próprios interesses. Muitas vezes, a burguesia, diante de uma certa situação, subverte pela força suas próprias regras e instituições, rompendo com as mediações políticas do Estado e agindo pela pura força física. Quando isso ocorre, temos um golpe. 

O golpe é a emergência da força física em estado bruto, quando as mediações político-institucionais são abandonadas e a violência nua e crua é usada para impor a vontade da classe dominante.  Foi assim em 1937 (Estado Novo), foi assim em 1964 (ditadura militar) e havia sido assim em 1851, com Luis Bonaparte, no primeiro golpe moderno.
Não havia indignação pelo golpe no semblante de
Dilma 
quando ela deixou o Palácio da Alvorada...
 

No entanto, a própria burguesia criou mecanismos institucionais, dentro da mediação política, para fazer valer sua vontade sem, contudo, precisar recorrer à força bruta. No parlamentarismo temos a moção de desconfiança. No presidencialismo, temos o impeachment. 

O impeachment foi criado em 1376 na Inglaterra e logo adotado por várias outras nações enquanto mecanismo de controle do presidente pelo parlamento. Pois, enquanto o parlamento é o locus da síntese das várias facções da burguesia, o presidente possui autoridade quase imperial e pode, no limite, usurpar o poder do parlamento, atropelando este.

O impeachment, portanto, é apenas um instrumento político pelo qual a burguesia manieta o presidente, daí ser gerador de um crime de responsabilidade e não de um crime comum.

É curioso que uma das primeiras nações a incorporarem o impeachment às suas leis e a mais comumente identificada pelo grande público com tal instituição, os Estados Unidos, nunca o tenha culminado. Nos poucos casos de abertura do processo, ou ele não foi concluído ou resultou na renúncia do presidente. Isto apenas prova que a coesão burguesa nos EUA é imensa e, portanto, o presidente mantém-se normalmente na linha

No entanto, nos países periféricos – entre os quais está o Brasil –, onde o capitalismo é cíclico e a luta de classes, feroz, o impeachment acaba muitas vezes surgindo devido às periódicas crises de acumulação e a própria fragilidade econômica da burguesia. 

Em tempos anteriores, a burguesia lançava mão do puro e simples golpe de Estado. Mas desde o fim da ditadura de 1864/85, ela passou a usar o mecanismo mais suave do impeachment, que possibilita a destituição do presidente sem a necessidade de subverter-se o sistema institucional. 
...mas, seria utópico exigir que todos os presidentes de esquerda depostos fossem como Allende. 
É sintomático que o impeachment tenha despontado no Brasil justamente na época do último Governo Vargas, quando a oposição o tentava derrubar. O impeachment então surgiu enquanto instrumento de retirada do presidente para se evitar o puro recurso à força militar. 

Mas o impeachment só acontece quando as facções majoritárias da burguesia concluem que o presidente não é mais viável. Ou seja, decidem que de alguma forma o presidente é mais obstáculo que apoio à realização de seus interesses, mas ainda acredita na legalidade em vigor, buscando mudar o governo e não a institucionalidade. 

Por esta razão, Dilma não sofreu golpe algum. Ato de força contra ela não houve. Ela foi tirada porque o conjunto da burguesia considerou que sua presença era prejudicial aos negócios.

Bozo não caí porque ele, ao contrário, beneficia os negócios. Não existe sacralidade na política, mas apenas um formalismo cujo biombo esconde o verdadeiro poder social: a força material da burguesia. 
Até filme foi feito para martelar a narrativa petista. 
Já de autocrítica pelos erros então cometidos, nada!
 

O impeachment nunca é um ato jurídico, mas sempre político. Daí a irrelevância de haver ou não crimes: o que de fato o determina é a conformidade ou não entre as ações do presidente e os interesses da burguesia. 

O poder econômico não se comove com centenas de milhares de mortes por covid, mas está sempre pronto para virar a mesa quando suas exigências não são atendidas. (por David Emanuel Coelho)
.
Toque do editor – na época, este blog sempre sustentou que, em termos da legalidade burguesa, a maquilagem das contas governamentais para evitar que os eleitores tomassem conhecimento da situação crítica das ditas cujas, tornando inevitável uma aguda recessão no ano seguinte, era, sim, motivo constitucional para um impeachment.

Jamais deixamos, contudo, de ressalvar que nunca antes pedaladas fiscais haviam sido consideradas razão suficiente para um impedimento presidencial. Ou seja, embasamento existia mesmo, mas, caso não interessasse à burguesia livrar-se da Dilma, nem se tocaria no assunto. 

E todas as etapas legais para o afastamento dela foram cumpridas – como jogo de cartas marcadas, evidentemente –, mas quem mandou ela e o PT acreditarem, com tamanha ingenuidade, que aqui no Brasil os tais
valores republicanos são pra valer?!
(por Celso Lungaretti)

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails