sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

PESAM MAIS AS ALEGRIAS QUE DEVEMOS AO REI PELÉ NOS GRAMADOS OU AS BOLAS FORA DO CIDADÃO EDSON ARANTES NO DIA A DIA?

Pelé deixou de ser unanimidade para os torcedores comuns quando se negou a atuar pela seleção brasileira em 74, alegando respeito aos que haviam pagado para ver suas partidas de despedida
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dalton rosado
PELÉ
Não me furto a confrontar-me publicamente com os dramas de consciência dos meus sentimentos.

Geralmente tais conflitos aparecem como contradição entre o que é tido como politicamente correto e o que vai no funda da minha alma.

Tenho questionado muito a política ao longo dos últimos anos, identificando como política todo o enquadramento a partir de uma matriz do pensar que nos remete a jogar um jogo dentro de regras preestabelecidas. 

Tal como na história do ovo de Colombo, há que se quebrar a sua casca para o estabelecimento de novos fazeres. O pensar fora da caixa nos permite a elaboração de pensar o novo sem as amarras do velho, e com tal postura descortinar um ampliado horizonte de possibilidades. 

Isto posto, vamos à análise do meu conflito de consciência pessoal em torno do tema Pelé.

O meu lado politicamente correto condena o maior atleta do século passado.  
Já os politizados o criticavam desde 70. Médici explica

O meu lado de menino que era apaixonado por futebol (e ainda sou, apesar de compreender que ele se tornou, predominante e infelizmente, uma mercadoria, embora eventualmente ainda se manifeste como arte esportiva) e acordava agarrado ao melhor presente recebido do meu pai na pré-adolescência, uma bola de couro, agradece todas as alegrias dadas por Pelé, de 1958 até meus 20 anos, em 1970.

Foi assistindo ao recém-lançado filme Pelé e vendo e ouvindo o sempre lúcido jornalista esportivo Juca Kfouri que entendi melhor o porquê do conflito da dubiedade de meus sentimentos em relação ao Pelé. 

Pelé, tal como Roberto Carlos, um o rei do futebol e outro, o da música pop, sempre se esquivaram de emitir opiniões políticas mais polêmicas, mesmo sendo celebridades cujas palavras poderiam calar fundo na consciência popular brasileira. 

Celebridades têm o direito de se omitirem sobre questões de relevância nacional? Ficarem em cima do muro lhes é negado, ainda que não entendam muito do assunto, justamente porque, mesmo evitando admitir, eles têm lá, sim, suas preferências pessoais, que deveriam ser francamente expostas aos que os idolatram. Não deveriam deixar que os seus interesses midiáticos os fizessem menores como cidadãos. 

Mas, como leigos que são em política e voltados inteiramente para os seus talentos artísticos, devemos minimizar os danos de suas omissões de opiniões e posicionamentos, bem como analisar os contextos nos quais tais omissões se dão. 

Concordo com que foi brilhante o posicionamento de Muhammad Ali, em se negar a ir para a guerra do Vietnã, dizendo que os vietnamitas nunca lhe haviam feito nenhum mal, e que, ao subir ao ringue para uma luta de boxe, travava guerra bem maior: uma afirmação contributiva para a sua etnia num país que a segregava socialmente.
Ali e Pelé: contextos diferentes

Mas concordo, principalmente, com Juca Kfouri quando ele diz que Muhammad Ali vivia num país que respeitava as regras do jogo democrático-burguês, as quais, embora leoninas, são bem diferentes da bestialidade de uma ditadura militar. 

Pelé vivia no Brasil dos anos 60, momento de sua exuberância esportiva, quando estávamos sob terrorismo de Estado, circunstancia que diferencia profundamente o contexto dos dois grandes ídolos esportivos, o de lá e o de cá.

Caso Pelé, com seu prestígio internacional que vinha desde o Mundial da Fifa de 1958, e reiterado com as incríveis façanhas suas e do Santos mundo afora (até parou uma guerra africana quando por lá se apresentou!), poderia ter-se manifestado contra as barbaridades que eram cometidas contra o povo brasileiro?

Claro que sim, poderia e deveria; mesmo que isto prejudicasse em muito sua trajetória futebolística no Brasil. Mas ele não quis isso, infelizmente. Devemos crucificá-lo por tal omissão? 

Não, isto seria excessivo, embora possamos lamentar a sua postura de quase sempre dizer simbolicamente amém a um sistema que segregava a sua etnia. 

As exceções ficam por conta de episódios como o de dedicar seu milésimo gol às crianças do Brasil (isto no ano de 1969, quando a fúria assassina do regime estava no auge!); ou quando pugnou rogando love, love, love nos EUA, com os punhos cerrados (mas com o dedo indicador para cima).  

Tais posturas de inconformismo ocorreram, contudo, episodicamente, além de se terem dado de modo muito genérico, beirando a demagogia bem comportada e politicamente correta. 

Entretanto, não podemos esquecer as imensas alegrias que Pelé deu ao povo brasileiro, ainda que a euforia da conquista do tri no Mundial Fifa de 1970 fizesse ouvidos moucos para os gritos dos torturados e assassinados nas celas da ditadura. 

Pelé colocou, sozinho, o Brasil no mapa mundial, a ponto de ficarem sabendo no exterior que éramos do país do futebol e de Pelé, e que nossa capital não era Buenos Aires. Lá atrás, Eder Jofre e Maria Ester Bueno haviam dado uma mãozinha.
As estilísticas bicicletas do Pelé: inimitáveis (o Dalton que o diga...)
Agradeço a Pelé a alegria que me proporcionavam as matinês do cinema de minha cidade de então (Mossoró-RN), quando era exibido o
Canal 100: deliciava-me aquele maravilhoso samba do baiano Luiz Bandeira, na deliciosa orquestração de Valdir Calmon (que bonito é) fazendo o fundo musical das bicicletas do Pelé. Aliás, ao tentar imitá-las, quebrei o braço numa queda desajeitada... 

Agradeço a Pelé a alegria daquele jogo final contra a Itália em junho de 1970, quando já em Fortaleza e cursando a Faculdade de Direito da UFC, fui convidado por um colega ricaço para assistir ao jogo numa televisão com transmissão instantânea, colorida, regada a uísque importado e salgadinhos, para dali sairmos em passeata pela Beira-Mar eufórica.

Naquele dia tomei todas, sem saber exatamente por que e ignorando que futuros companheiros meus estavam sendo presos e torturados ao lado de outros dos quais apenas ouviria falar depois. Nunca mais os veria (como Bergson Gurjão Farias, que morreu no Araguaia).

À altura eu era apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, vindo do interior. Ouvia, ainda tímido, na mesma Faculdade e ano, as músicas recém tiradas do forno pelos cearenses Belchior, Ednardo e Fagner (este último apoiou Bolsonaro na eleição presidencial, mas já recuperou a lucidez); do piauiense Jorge Melo; e do meu amigo Rodger Rogério. 
Terá sido Messi o último sul-americano melhor do mundo?

Gostava muito das criações e interpretações do chamado
Pessoal do Ceará, mas ainda não possuía as informações que depois me fariam sentir a necessidade de colocar os meus serviços de futuro advogado a serviço do povo. E agradeci a Pelé por ele existir.

Talvez a minha inconsciência de jovem ingênuo que passava batido pela manipulação futebolística do sistema, naquele momento em que a ditadura era mais brutal, fosse parecida com aquela de quem era atleta dedicado full time à sua atividade esportiva, como Pelé. 

Acho mais relevante para uma análise e juízo de valor de caráter, a rejeição do reconhecimento de Pelé a uma filha fora do casamento, que era a sua cara; ninguém merece ser rejeitado(a) como tal. 

Mas, quando coloco na balança de ganhos e perdas, concluo que pesa mais o primeiro prato. É isto que meu coração decide e não devo mentir para mim mesmo para fazer média com o politicamente correto, até porque a política é a engenhoca que faz com que toleremos todo o escravismo milenar. 

Obrigado, Pelé: 
— pelas inesquecíveis alegrias que você me deu até meus verdes 20 anos;
— por ter lavado a alma de todo o povo brasileiro, que viu no menino pobre e negro a imagem de sua própria vitória e a afirmação de que tudo é possível, apesar das imensas dificuldades;
— por estar noutra galáxia em termos de futebol, acima de Maradona, Messi, Di Stefano, de todos os grandes craques brasileiros e mundiais de todos os tempos.

Finalmente, reiterando minha gratidão, peço que me perdoe pelo nível de exigência que minha consciência social lhe faz, recriminando-o pela omissão diante do que você poderia e deveria ter concomitantemente sido. Aí você seria ainda maior. (por Dalton Rosado)

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