(continuação deste post)
Mas, para nossa felicidade, há uma concorrência entre a autodestrutibilidade da forma burguesa pelos seus próprios fundamentos, que pode nos extinguir completamente (até porque tal forma social não está nem aí para as nossas vidas, das quais faz apenas uso utilitário e oportunista) e a aspiração humana pela vida, sentimento individual que se torna coletivo e que impulsiona o instinto de sobrevivência e de perpetuação da espécie.
Não por acaso, protegemos nosso filhos, antes mesmo de percebermos que temos o dever moral de pensarmos nos filhos de toda a humanidade).
O sentimento de permanência da vida é justamente o que pode nos despertar do transe burguês autofágico. Até mesmo um fanatizado defensor das falaciosas teses de combate à corrupção e defesa de um armamentismo belicista prepotente e violento como ferramenta combate à dita cuja, pode se voltar contra o seu guia ideológico quando se apercebe de que a sua vida está em jogo e de que o seu mito tem pés de barro.
Os trabalhadores, tal como o próprio trabalho abstrato (substância primária da formação do valor, dinheiro e mercadorias), ao invés de serem sujeitos da revolução anticapitalista, eles próprios se inserem na condição de uma forma fetichista, como categorias capitalistas que são.
Ressalte-se que o fetichismo da mercadoria foi substancial e brilhantemente denunciado n'O Capital por Marx, como metáfora da adoração aos deuses de pedra dos aborígenes australianos, por eles criados e que sacrificavam vidas em seu nome pedindo chuva e outras graças.
Os trabalhadores, ainda que pertençam ao universo das categorias burguesas, já que contribuem para a formação e existência do capital, não devem ser considerados burgueses no sentido sentimental e espiritual da palavra, por não usufruírem do quantitativo de valor que produzem, segregados que são pelo capital.
Entretanto, buscam a melhora das condições de vida a partir do trabalho e não contra o trabalho (não é como agem os sindicatos?) e, assim, sem o querer, absorvem comportamentos e aspirações burguesas conceituais e de consumo; tendem a aspirar à propriedade das mercadorias que não podem comprar e, com tal comportamento, inserem-se sob o tacão egocêntrico do caráter onívoro destas.
Por sua vez, os partidos trabalhistas que operam dentro da institucionalidade burguesa (quaisquer que sejam suas intenções) e os sindicatos (quando apenas defendem os interesses pontuais dos trabalhadores sem pugnar por sua extinção enquanto categoria) legitimam o sistema de exploração capitalista e devem ser considerados como espécie anômala e contraditória de um mesmo ser burguês.
Quando um componente nos estratos sociais subalternos sob o capitalismo consegue furar o bloqueio étnico e social que lhe é imposto pela burguesia, ascendendo ao comando do poder político institucional ou mesmo empresarial, não raro atua como seus antigos opressores, procurando demonstrar toda a sua obediência e gratidão ao dito cujo (temos hoje um exemplo disto na Fundação Palmares).
Se os trabalhadores tivessem consciência de suas próprias forças e de suas condições de artífices do capital que os escraviza, seriam os primeiros a cruzarem os braços, não pelo medo da morte na pandemia, mas pela convicção da possibilidade de construção de suas próprias emancipações a partir da criação de um modo de produção social diferenciado do mercantil.
Submetendo um burguês ao Raio-X do olhar crítico dos seus conceitos e comportamentos, constataremos é só um ser social dividido e tresloucado, que conspira contra si próprio quando enxerga os demais indivíduos como adversários a serem vencidos e não como semelhantes capazes de completá-lo, com ele interagindo de forma mutuamente benéfica.
O que é um capitalista burguês, senão um administrador de capital (que precisa aumentá-lo permanentemente, sob pena de ficar para trás) tentando vencer o seu concorrente na produção e venda de mercadorias na guerra concorrencial de mercado e que, portanto, encara como rivais todos os seus iguais?
O sentimento e comportamento burgueses podem estar introjetados nas mentes dos capitalistas exploradores e até dos seus serviçais menos poderosos. O que dizer do presidente Destrumpelhado, ao mesmo tempo um bilionário burguês e uma caricatura de político, ou de um capitão Boçalnaro, o ignaro, um mero serviçal político transitório do capital, senão que representam a imagem emblemática do burguês típico?
O comportamento burguês, antes de ser um estado de espírito próprio ao estágio atual inferior da consciência humana, é, acima de tudo e de todos, um modo de ser socialmente nocivo.
(por Dalton Rosado)
Um comentário:
Grande Dalton,
Relembro que senti-me um tanto irritado, quando era jovem, e entendi essa relação entre pobres e ricos.
Mas, foi como se tirassem um peso das minhas costas: vi que o jogo era feito para eu perder.
Logo, a culpa das derrotas que sofria não era minha!
Era da regra do jogo.
A responsabilidade pela falha não estava comigo.
Falido, mas sereno.
***
Obviamente, não permaneci na falência.
***
Ao longo da vida fiz algumas pirraças contra o sistema, sempre que me fosse seguro fazê-las, respeitando os limites de compreensão dos demais que estão, em geral, completamente submersos pelo sistema de valores burgueses.
A esse respeito foi de muita valia a leitura do livro Pedagogia do Oprimido.
Nele encontrei a minha já percebida ausência de culpa pelo meu status social, que o oprimido inveja e imita o opressor, e que a mudança tem que vir do oprimido, pois ao opressor não interessa que algo mude.
***
Mesmo que um burguês quisesse ser a mudança ele não poderia sê-la.
Essa mudança tem que vir do oprimido, em bases totalmente diversas da dos opressores, se não, não é mudança.
***
Eu também questionava por que, sendo tão clara a desigualdade, as pessoas não acabavam com ela?
Ao procurar responder a isso deparei-me com o "eu".
Não a tríade egoica definida pela psicanálise.
Mas sim, o "eu" que teve início quando a primeira molécula replicante isolou-se parcialmente do meio e começou a fazer clones de si mesma.
Isso deu início a diferenciação ("eu" contra o meio e contra os "outros").
O fenômeno determinante da vida age através atitudes competitivas e cooperativas sempre subalternas a prioridade máxima de manter o "eu" distinto do meio e dos outros.
***
Por isso é impossível a cooperação pura e isenta de interesse.
Ao aproximar-se demasiado dos demais, ou do meio, o ser sente seu precioso "eu" dissolver-se (nos "outros" ou no meio) e isso está associado ao terror mais primitivo de qualquer vivente: a morte.
***
O que poderíamos fazer, e nem isso fazemos, é nos entendermos de maneira cooperativa e respeitosa (legítima>legis>lex).
Aceitando que todos devem e tem o direito de participar e receber uma parte igual da riqueza imensa que temos poder de gerar.
Mas o "eu" não deixará.
E sem "eu" não há vida.
***
SF
Postar um comentário