O BURGUÊS
É absolutamente legítima e desejável a aspiração de crescimento humano nos vários níveis da existência da espécie, seja do ponto de vista das condições de subsistência vitais (como morar, comer, transportar-se, vestir, amar, divertir-se, etc.) como das condições de apreensão do saber a partir de um código moral virtuoso.
Entretanto, a vida sob a égide da relação social capitalista distorce a legitimidade dessa aspiração, justamente porque se funda na exploração de uns sobre outros.
É a competitividade autofágica, destrutiva, fundada no levar vantagem de uns sobre os outros (traduzida vulgarmente aqui entre nós como a lei de Gérson) que mistura as coisas, ou seja, positiva uma aspiração legítima com um fazer ilegítimo que acaba sendo destrutivo do ser e autodestrutivo da própria forma (a forma-valor ou forma-mercadoria).
O ser humano moldado a partir dos valores falsamente iluministas do iluminismo burguês, republicano, sub-repticiamente escravista, de vez que concebido sob uma aura de libertação do escravismo feudal, é essencialmente weberiano, puritano, nórdico, branco, machista, narcísico e prepotente para com os que considera inferiores.
É, consequentemente, xenófobo, ainda que o capital seja uma lógica abstrata e autotélica, que independe da pessoalidade dos que a conduzem, pois os submete indistintamente como uma patologia esquizofrênica a apoderar-se da mente deles.
O ser burguês é um estado de espírito que independe da detenção pessoal ou não do poder econômico e político, uma vez que todos são súditos do capital. O valor é o Deus que molda o burguês; e o capital, seu fim autotélico.
Mesmo um pobretão metido a servo político do capital pode ser burguês.
O que dizer de alguém que inaugura uma exposição do próprio traje e o de sua esposa quando da cerimônia de posse na presidência da República, senão como um patético burguês narcisista típico? Realmente, o burguês é ridículo!
O valor é o Deus social do capital, sendo, ao mesmo tempo, autofágico, porque caminha para a autodestruição; bem como autoritário em relação a todos os seus súditos, mesmo para com aqueles que o servem (os capitalistas).
Ao mesmo tempo em que promove o bem-estar consumista e de poder social aos que o administram promovendo a sua cumulatividade (pretensamente ad aeternum), ele é impessoal e dá ordens a ditos súditos.
Caso não sejam obedecidas disciplinadamente as ordens do capital, tal desobediência os levará à ruína. Ou seja, eles, os burgueses, ainda que beneficiários de uma lógica impositiva, são submissos ao seu senhor (o capital), o qual os impede de gestos de solidariedade humana, mesmo que sintam impulsos neste sentido.
O patrão burguês mais apiedado dos seus empregados, dos quais extrai mais-valia, despede-os impiedosamente ou com o coração mercantil partido quando uma depressão econômica qualquer ameaça a continuidade do seu negócio. Aceita obedientemente o que se costuma dizer, no jargão burguês: o capital não aceita abuso.
O mesmo acontece com os governantes políticos sob o capital, que decretam a quebra do necessário isolamento social sanitário em obediência à necessidade da continuidade das relações mercantis que considera vitais (e o são, sob sua ótica mercantilista, considerada por eles equivocadamente como um dado ontológico da vida social), ou quebram qualquer receituário da boa administração pública do respeito à responsabilidade fiscal (gastos compatíveis com as receitas, mais uma contradição capitalista).
No mundo mercantil todos se tornam artífices de sua existência predatória justamente porque o capital não apenas cria a mercadoria para as pessoas, como também cria pessoas para as mercadorias, numa interação metabólica que impõe a proibição de um pensar fora dessa elucubração esquizofrênica diabólica.
Todavia, como diz Anselm Jappe, na introdução do bom livro de Robson Oliveira O homem sem qualidades à espera de Godot:
"Não estamos diante de uma condição imutável do ser humano, mas de uma forma histórica. Assim como essas formas vieram ao mundo, também podem desaparecer. Entendê-las é o primeiro passo para nos libertarmos delas um dia".
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