O fenômeno, tão recente quanto fugaz, que fez aumentar no mundo todo a influência dos autocratas é o mesmo que agora derrete o seu prestígio: a perda de substância da forma-valor.
Os autocratas cresceram politicamente sob a égide de proposições nacionalistas (America first, do recém-demitido presidente destrumpelhado é a mais notória delas) que se consubstanciam em protecionismo de suas produções de mercadorias e outros mecanismos de política monetária, bem como de crédito, juntamente com posturas xenófobas face aos fluxos migratórios de pessoas desesperadas que fogem da miséria em seus países de origem.
Nos países outrora detentores de hegemonia econômica e de produção de mercadorias, os autocratas receberam o apoio de uma população que vê escorrer pelos dedos seus empregos e salários, além da falência do chamado Estado do bem estar social, daí ter acredito, esperançosa, que seria possível uma volta ao passado.
Mas, as suas cantilenas salvadoras não têm consistência; então, todos os autocratas deverão agora amargar o mesmo You are fired (você está demitido) com que um bilionário arrogante humilhava aprendizes num execrável reality show, sem que eles pudessem reagir rodando a baiana, como acaba de fazer o suposto modelo de empresário vitorioso.
O inconformismo de Donald Trump com o resultado das urnas demonstra bem seu espírito autocrático. Foi sumamente ridículo ele contestar como fraudado um processo eleitoral que teve lugar nos 50 Estados-membros da Federação, os quais detêm autonomia sobre o dito cujo, e que elegeu, numa mesma cédula eleitoral, parlamentares republicanos a maior (senadores e deputados).
Note-se que a vitória de Joe Biden no colégio eleitoral (306 a 232. ou 56,8% a 43,2%), com vantagem de mais de 4 milhões de votos, foi relativamente expressiva, e nenhuma recontagem ou anulação de alguns votos mudará o resultado eleitoral.
As pessoas mundo afora votam muito de acordo com questões de saúdes econômicas circunstanciais, mas não conhecem a essência da mecânica funcional do objeto maior do seu desejo (o dinheiro), porque isto não lhes é ensinado, pois tal segredo é guardado no quarto escuro onde reside e está guardada a chave da exploração social mundial one world.
O dinheiro é a representação numérica e monetária da forma-valor, a qual, por sua vez, é uma abstração matemática que permite a subtração da produção social produzida coletivamente a partir de tal critério (o próprio valor) para a a sua acumulação autotélica pretensamente ad aeternum e que privilegia os seus detentores e administradores em detrimento da comunidade.
Mas, trata-se de uma equação irresolúvel por força de suas contradições internas; assim, somente sobrevive como fator histórico que é (e não um dado ontológico da existência humana) até o momento em que se autodestrói e tenta destruir não só a natureza, como também a própria sociedade mediada por sua forma autotélica.
E é a mesma insatisfação social que elege e demite os autocratas, num eterno pêndulo da ineficácia estre autocratas conservadores e bem intencionados sociais-democratas, justamente porque a questão de fundo não é atacada: a superação de um modo de produção social escravista, que se tornou obsoleto a partir do desenvolvimento tecnológico do saber da consciência cívica sobre direitos fundamentais do ser humano.
Joe Biden é social-democrata pertencente à ala mais conservadora do seu partido, o que facilitou sua aceitação pela sociedade estadunidense cansada dos arroubos autoritários e prepotentes de Trump. Foi a junção dos votos dos republicanos menos à direita e dos democratas menos à esquerda que lhe permitiu a vitória.
Mas não terá vida fácil, pois:
— terá de enfrentar, até que se possa confirmar a eficácia de uma vacina, a epidemia do coronavírus sem o negacionismo do seu antecessor, o que representará, num primeiro momento, a redução das relações de produção numa sociedade de alto poder de consumo e menor arrecadação tributária, bem como os problemas daí decorrentes;
— conviverá com o aumento do déficit da dívida pública crescente, que já ultrapassa o tamanho do PIB anual (cujos números se contam em mais de USS 20 trilhões) e que, apesar dos juros baixíssimos ou negativos, não deixa de ser preocupante;
— pressionado por organismos internacionais aos quais promete aderir, deverá adotar a abertura comercial multilateral, o que deverá aumentar ainda mais o déficit dos Estados Unidos na balança comercial;
— combaterá a crescente rejeição ao dólar dos Estados Unidos como moeda internacional, em razão da compreensão cada vez mais clara da falta de substância deste padrão monetário meramente fiduciário, que somente se sustenta graças à desinformada aceitação mundial;
— incumbir-se-á da transição da industrialização baseada em combustíveis fósseis, grande emissor de gás carbônico, para fontes energéticas limpas (eólica, fotovoltaica, hidráulica, vegetal, etc.) como promete fazer por adesão já anunciada à Conferência do Clima Paris 2015;
— sofrerá a oposição dos ecologistas estadunidenses que defendem o fim do uso de gás de xisto, por ele contaminar o lençol freático;
— estará no olho do furacão de uma depressão econômica mundial, que certamente afetará as relações mercantis como um todo;
— precisará administrar uma anunciada crise do sistema de crédito dos grandes bancos nacionais e internacionais em razão do crescimento da dívida pública mundial paralelamente ao decréscimo da reprodução de valor válido (advindo da produção de mercadorias);
— terá de obter a aprovação e implementar suas propostas apesar da oposição de um congresso com maioria de senadores republicanos, num país no qual as questões de relevância nacional são ali decididas, e de uma Câmara dos Deputados em que os democratas prevalecem mas não detêm maioria folgada;— vai combater a opressão racial sistêmica, conforme prometido por ele e por sua vice-presidente Kamala Harris, o que gerará conflitos raciais num país fortemente armado (estima-se que nos EUA 300 milhões de armas estejam nas mãos da população) e no qual os supremacistas brancos não hesitam em exercitar a sua xenofobia abominável;
— governará com uma Suprema Corte que, de nove membros, possui seis conservadores, propensos a dificultarem a implementação do seu discurso de campanha relativamente aos direitos civis; e
— conviverá com outras questões próprias às divergências de um país no qual os Estados-membros têm grande autonomia legislativa, que muitas vezes se choca com os interesses nacionais de um poder político economicamente e politicamente verticalizado.
É difícil, após um quadriênio de mandato, sobreviver às contradições que se avolumam a cada ano, daí o alto risco de uma volta ao conservadorismo, facilitada pela tradicional falta de memória dos eleitores.
A nós, os emancipacionistas, cabe denunciarmos a farsa de democracia burguesa, na qual os eleitores decidem sobre o que já está previamente decidido, ou seja, você pode escolher entre candidatos à direita ou da esquerda, desde que não detenham poder real, dependentes que são do poder que realmente manda, o econômico.
Na democracia burguesa apenas são ratificadas as relações sociais que já estão previamente postas e sobre as quais não se permite opinar.
É preciso que coloquemos o dedo na ferida, apontando qual é o remédio para esse eterno pendulo da ineficácia, principalmente para os países da periferia capitalista que sentem-se culpados do seu próprio infortúnio e sofrem querendo imitar os que os exploram, como se tudo fosse uma questão de (in)competência administrativa.
Mas a verdade, mesmo que relativa, tal como óleo dentro d’água, insiste em vir à tona. (por Dalton Rosado)
Um comentário:
Grande Dalton!
Você esmiunçou com grande acurácia os desafios superficiais do estado estadunidense.
Daí que, ao ver as folhas, ignorou o tronco e, principalmente, as raízes.
Estes caras estão, a semelhança de Gorbachev, tentando salvar o sistema político econômico deles que se resume, como já disse JJ Rousseau, em poder de arrecadar impostos e violência institucional (a manu militari que você tanto cita).
E eles vão fazer de tudo, genocídio inclusive, para se perpetuar com essas prerrogativas.
O butim é cobiçado.
Naturalmente, outros caras já estão na jogada: o pessoal das criptos e da moeda transnacional.
O Forum Econômico Mundial já fala escancaradamente em reset do sistema financeiro e a substituição da moeda fiduciária dos estados-nações por cripto moedas, a princípio emitidas por bancos centrais, mas é bem capaz de, com a conversibilidade, virar mesmo uma única cripto de aceitação mundial.
O poder destes novos dirigentes mundiais consiste na capacidade de se erem um apêndice da nossa memória e intermediar, de maneira honesta e eficiente, as nossas transações comerciais.
A única dúvida é se teremos um mundo orwelliano ou huxleyano.
***
Você é inteligente o suficiente para enxergar quais as consequências disso para os "autocratas" regionais e suas moedas sem lastro.
***
P.S.
Já estou esperando para comprar meu litrão de SOMA!
Oh! Brave new world!
SF
Postar um comentário