Falo da doença de Donald Trump. Melhor dizendo, da natureza trágica, irônica, poderosamente gótica de termos o nosso Donald com o bicho.
Embora, para espíritos literários, a trama seja um pouco previsível. O homem que negava a doença e se sentia acima dela é visitado pelo corona no último ato: onde é que eu já li isso?
Sim, em incontáveis livros. Mas, como lembrou o sempre excelente Laurence Tribe, é preciso reconhecer que Edgar Allan Poe chegou lá primeiro com o conto A máscara da morte vermelha.
Difícil negar. Aliás, falando de Allan Poe, é impressionante como as suas histórias nos interpelam diretamente nestes tempos de peste. Meses atrás, li A narrativa de Arthur Gordon Pym e gelei com a familiaridade da história: dois amigos partem à aventura pelo mar, mas uma tempestade imprevista os arrasta para os confins da racionalidade.
Não conto o resto, até para não estragar o café da manhã. Mas não há melhor metáfora sobre a tirania da imprudência (e sobre a tirania da contingência) escrita décadas antes de Joseph Conrad também nos legar as suas alegorias náuticas.
Enquanto o povo morre lá fora em agonias mil, eles comem, dançam e gracejam, ainda que exista um elemento dissonante naquela festa: sempre que o relógio marca a mudança da hora, há um silêncio sepulcral que arrepia todos os presentes. Será um prenúncio de morte? A manifestação de uma má consciência?
Talvez ambas. Porque a verdade —atenção: spoiler— é que um estranho bate à porta e entra no salão. Vem com uma máscara macabra, como se fosse o rosto de um cadáver.
O príncipe tenta expulsá-lo. Cai morto. Ali está a Morte Vermelha elle-même, para ceifar todos os convidados.
Como acontece com as histórias de Allan Poe, há interpretações para todos os gostos. Para os mais versados no Antigo Testamento, o conto é uma meditação implacável sobre a justiça divina, que sempre se abate sobre a corrupção moral dos homens.
Ou, então, é uma denúncia sobre a futilidade da riqueza perante o fim inexorável.
Mas pertence a um brasileiro a melhor interpretação sobre o conto de Edgar Allan Poe, embora ele não tenha escrito especificamente sobre Poe: falo de Martim Vasques da Cunha e do ensaio O Contágio da mentira: como sobreviver na cultura do Corona, recentemente publicado pela Âyiné.
O livro de Vasques da Cunha é importante ao lembrar dois conceitos fundamentais para entendermos a peste que vivemos.
Para começar, a peste é perturbadora porque gera uma crise de hierarquia: o vírus não discrimina entre ricos e pobres, virtuosos e viciosos, letrados ou analfabetos, governantes ou governados. Ele é indiferente às nossas categorias sociais ou mentais.
É a angústia perante essa insolência que leva muitos políticos a parodiar e a negar a realidade radical que têm pela frente. Um gesto que apenas amplifica essa realidade em manifestações cada vez mais sombrias.
O príncipe do conto, tal como o príncipe da Casa Branca, não soube como responder à realidade radical que perturbou a ordem das coisas. E optou pela ilusão ou pela mentira, tocando música enquanto tudo ardia.
Pelo menos, até o intruso penetrar nas paredes do castelo, mostrando que ninguém estava a salvo do seu próprio destino.
E agora? Agora, há quem diga que a experiência do coronavírus é um bálsamo para Trump (como foi para Bolsonaro; eu admito que sim); ou, pelo contrário, o réquiem da sua candidatura (uma refutação prática da sua irresponsabilidade teórica).
Em qualquer dos casos, a lição da morte vermelha não é para príncipes incorrigíveis. É para nós, meros mortais.
Como escreve Martim Vasques da Cunha:
"O ser humano precisa fazer uma única coisa para sobreviver na cultura do corona: cultivar o jardim da liberdade interior, o único espaço onde a consciência individual sabe que uma vida só pode ser medida pelo que você sabe ser o amor e o respeito pelos outros e por si mesmo —duas coisas que são extremamente fáceis de serem destruídas"(por João Pereira Coutinho)
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