A base radical bolsonarista está decepcionada com o presidente Jair Bolsonaro. A gota d’água foi a indicação do desembargador Kassio Marques para a vaga no Supremo Tribunal Federal.
Assim que o nome do magistrado foi anunciado, as redes sociais bolsonaristas entraram em parafuso, e Bolsonaro chegou a ser chamado de traidor. Tudo porque Kassio Marques é considerado petista por ter sido nomeado pela presidente Dilma Rousseff em 2011 para o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região.
Para piorar, o senador Renan Calheiros, alvo de 17 inquéritos em curso no Supremo, resolveu dar seu apoio explícito a Bolsonaro, dizendo que o presidente pode deixar um grande legado para o Brasil que é o desmonte desse Estado policialesco que tomou conta de nosso país – em referência à Operação Lava Jato.
Segundo Renan Calheiros, a nomeação de Kassio Marques para o Supremo, bem como a de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República e a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, faz parte desse desmonte.
O próprio Bolsonaro não se fez de rogado e disse: Acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo.
Os intérpretes benevolentes da glossolalia bolsonarista podem dizer que o presidente só usou uma força de expressão para enfatizar a desnecessidade da Lava Jato ante a lisura de seu governo; já quem não é bobo viu aí um ato falho que trai um desejo.
Para aqueles que elegeram um político que prometia solenemente levar a Lava Jato para o centro do poder em Brasília – e para isso carregou a tiracolo o juiz símbolo da operação, Sérgio Moro – deve ser mesmo uma decepção e tanto.
O fato é que Bolsonaro está se descolando do chamado bolsonarismo, o movimento que leva seu nome, mas, como a esta altura já está claro, quase nada tem a ver, em essência, com o ex-deputado do baixo clero.
Para os fanáticos bolsonaristas, quase todos os políticos são corruptos, o establishment, dominado por comunistas, é o grande inimigo do País e a própria atividade política é irremediavelmente criminosa, razão pela qual defendem rupturas institucionais e, no limite, a instalação de uma ditadura. Era um discurso reacionário à procura de quem o declamasse sem qualquer pudor.
A certa altura, Bolsonaro se ofereceu como o político que empunharia essa bandeira golpista, em nome do saneamento moral na Nação, e acabou por se viabilizar eleitoralmente, sobretudo em face dos muitos desmandos do PT e dos muitos erros cometidos pelos partidos do centro democrático.
Bolsonaro, contudo, nunca foi bolsonarista, no sentido dado por seus agora abalados seguidores. Mau militar e parlamentar de baixíssima extração, fez carreira medíocre na defesa de corporações de servidores públicos, sendo muito mais bem-sucedido como cabo eleitoral dos filhos.
Era preciso ser muito ingênuo, mal informado ou vesano para acreditar que alguém com essa folha corrida, sem qualquer serviço prestado ao País, fosse de fato liderar um movimento pelo resgate ético do Brasil.
Passados quase dois anos do mandato, Bolsonaro já parece estar muito mais à vontade para rasgar a fantasia de impoluto defensor dos valores morais da Pátria, que nunca lhe caiu bem, e exibir-se como sempre foi, sem tirar nem pôr.
Bolsonaro caiu nos braços do Centrão, grupo de partidos fisiológicos com os quais tem muito mais afinidade do que os sabujos que o chamam de mito gostariam de admitir. Em meio a políticos que dedicam tempo e energia pensando exclusivamente na eleição seguinte e em como extrair vantagens do poder, o presidente deve estar se sentindo em casa.
Assim, com as bênçãos do sempiterno Renan Calheiros, governista sob qualquer governo, Jair Bolsonaro pode se entregar de corpo e alma a seu projeto de reeleição e concentrar energias na costura para evitar que sua prole, encalacrada na Justiça, responda por seus atos.
Tudo isso mostra que, para Bolsonaro, o bolsonarismo nunca existiu senão como veículo para seu oportunismo político. Os zelotes desse movimento de araque terão que procurar outro messias para adorar. (editorial d'O Estado de S. Paulo de 13/10/2020)
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