segunda-feira, 7 de setembro de 2020

7 DE SETEMBRO: MORTE (parte 2)

(continuação deste post)
Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura; e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. 

E agora,
— quando não há mais desculpa? 
— quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment?
— quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para aproximar-se do PMDB?
— quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal?
— quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo?
— quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro?
— quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido numa das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar?
— quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial?
— quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer encher a boca do repórter de porrada (esta pergunta aqui: Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?)?
— quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro, esta acima e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta (Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?)?

A pauta anticorrupção como justificativa para votar num homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema-direita no poder. 

Dilma Rousseff foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado pedaladas fiscais. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.

Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente tocando a vida, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. 

Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. 

Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19

Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. 

No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. 

Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.

Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. 

Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.

Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. 
Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.

Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. 

Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não-retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.

Neste 7 de setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é apenas incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. 

Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.
O domingo da reconquista da avemida Paulista, graças à coragem dos secundaristas e torcedores de futebol
A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. 

Neste 7 de setembro há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19. inumeráveis. 

Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. 

Talvez a pergunta mais importante deste 7 de setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. 

No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando. 
(por Eliane Brum, escritora, repórter e 
documentarista, no jornal global El Pais)
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