O nosso bom Rui Martins, que cobre anualmente o festival cinematográfico de Locarno, na Suíça, desta vez teve de contentar-se com o que ele qualificou de um mini-festival, pois a pandemia o reduziu a uma mera mostra de reprises.
Pelo menos os organizadores helvéticos entendem do riscado, pois programaram simplesmente o melhor filme brasileiro de todos os tempos: Terra em Transe (1967), do Glauber Rocha.
Segue o trecho de seu balanço do festival que Rui dedicou à obra-prima glauberiana, cuja íntegra pode ser vista na janelinha que encerra este post. (o editor)
SOMOS A MESMA TERRA EM TRANSE
Terra em transe nos mergulha num mundo político de corrupção, traições, infiltração estrangeira, desejo de revolução e luta contra a pobreza, populismo, personalismo e violências. É o Brasil de todos nós, visto por Glauber Rocha.
E uma incômoda constatação: tanto tempo depois da realização do filme, o Brasil de hoje não é muito diferente do Brasil de Terra em transe, feito três anos depois do golpe militar.
Houve alguns reajustes. Em lugar do catolicismo, como apoio político-religioso ao poder dominante, temos hoje o evangelismo, mas o pvo, com algumas exceções, é o mesmo: servil, carola, fanático e crédulo, pronto a seguir quem melhor o saiba enganar.
Quando os populistas se defrontam com o povo e os representantes do dito cujo pedem água potável encanada ou títulos de propriedade de suas moradas, a reação é violenta e mortal. Isto nos lembra a atualidade de hoje em Minas Gerais com os sem-terra.
Por que o povo cede às ladainhas ou aos salmos e hinos dos religiosos? Glauber Rocha é inclemente no seu filme –o povo segue como cordeiro (agora se diz gado) a espada ou a cruz, não percebendo as mentiras e enganações dos líderes populistas.
E nós todos nos deprimimos ao vê-la confirmada pelo chocante resultado da última sondagem de opinião do instituto Datafolha. Bate em mim, que eu gosto, parecem dizer os entrevistados.
Lembro-me de um velho refrão repetido tantas vezes pelos estudantes durante o governo militar: o povo unido derruba a ditadura! Que povo? O nosso povo não derruba ditadura nenhuma; pelo contrário, é até capaz de nos conduzir a uma ditadura evangélica neofascista.
Na refundação da nossa esquerda, ou das nossas esquerdas, será preciso rediscutir a semântica e valor das palavras usadas nas palavras-de-ordem.
Povo sem instrução e sem boas escolas não derruba coisa nenhuma. Assim como o conceito de homem bom, de Rousseau, é moralista e não realista.
O povo pobre, sofrido, explorado, não é também o bonzinho dos cristãos católicos ou evangélicos, à espera de redenção.
O povo pobre, sofrido, explorado, não é também o bonzinho dos cristãos católicos ou evangélicos, à espera de redenção.
Povo com escolas laicas primária e secundária, com salários decentes, com moradias dignas, com assistência médica e social, cujos filhos podem ter acesso às universidades públicas, um povo desses, sim, não seria seduzido por histórias religiosas, nem por nacionalismos nazifascistas.
E nem precisaria derrubar ditaduras, porque não as teria eleito. Quando nossa esquerda entenderá isso?
E nem precisaria derrubar ditaduras, porque não as teria eleito. Quando nossa esquerda entenderá isso?
Numa análise que li, do colega Paulo Moreira Leite, sobre as últimas pesquisas da Folha de S. Paulo, notei uma ausência – a da influência, cada vez maior, do gado evangélico no conformismo do povo brasileiro diante do governo Bolsonaro.
Hoje, os pastores evangélicos, que se investiram de um poder divino, aceito cegamente por um povo sem instrução, são mais poderosos numa eleição que os militares. E, no caso de um golpe de Estado, quem nos garante que terão um discurso pacífico, se ora já são coniventes com a ideologia da violência do poder?
Mais alguns anos, o Brasil se transformará num Polônia carola evangélica, conservadora e retrógrada. (por Rui Martins)
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