1923: Hitler liderando o fracassado putsch da cervejaria |
demétrio magnoli
COOPTAÇÃO EM MASSA DE OFICIAIS DA RESERVA AMEAÇA FRAGMENTAR DIQUE INSTITUCIONAL
Vai ter golpe? – indagou-me um amigo dileto pouco tempo atrás. Retruquei com uma negativa convicta: os comandantes das Forças Armadas da geração atual aprenderam com a história e não repetirão, como farsa, a tragédia de 1964.
Vai ter putsch? – meu amigo pergunta agora. Respondi-lhe com mais um não, acompanhado por argumentos razoáveis. Contudo, pensando melhor, acho que perdi uma parte da paisagem.
Putsch é um intento golpista fadado, de antemão, ao fracasso. No célebre Putsch da Cervejaria de Munique (1923), Hitler e seus seguidores não obtiveram o esperado apoio de setores do Exército ou da polícia da Baviera.
Mas aquela escória nazista, forjada no caldeirão fervente da derrota alemã na guerra europeia, mostrou-se disposta a combater e morrer de verdade.
Já a escória de fanáticos bolsonaristas é feita do material lânguido fabricado pelas redes sociais. Deles nada surgirá, exceto ameaças anônimas digitadas a distância ou fogos de artifício numa esplanada deserta.
1938: integralistas daqui também tentaram golpe |
A parte que perdi da paisagem é outra. Até que ponto o bolsonarismo conseguirá limar a disciplina militar?
O fenômeno mais saliente é a ação ininterrupta das redes bolsonaristas nos quartéis. A cooptação de militares e policiais para a militância antidemocrática ganhou alento com as publicações de manifestos golpistas de altos oficiais da reserva e a difusão de mensagens dúbias oriundas dos generais do Planalto.
Contudo, paralelamente, desenrola-se um novelo menos visível, mas talvez ainda mais relevante: a militarização extensiva dos altos e médios escalões da administração pública federal. O Ministério da Saúde, ocupado de alto a baixo por militares, ilustra uma tendência generalizada.
Nesse passo, generais e coronéis passam a desempenhar funções de intermediários de contratos e compras governamentais. Abrem-se, assim, de par em par, as portas para a incorporação dos militares no ramificado negócio da corrupção estatal.
"Maduro entregou a militares setores mais lucrativos da economia" |
Dinheiro, muitas vezes, pesa mais que ideologia. No Egito, Hosni Mubarak consolidou seu poder pelo loteamento do aparelho administrativo e das empresas estatais entre os comandantes militares.
Quando o ditador tornou-se um fardo político pesado demais, o sistema ditatorial reciclou-se, substituindo-o por Abdel Fatah al-Sisi.
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika operou de modo similar, entregando ao Exército as chaves da economia para estabilizar, por duas décadas, seu regime autoritário.
A ferramenta funciona à direita e à esquerda. Maduro não caiu porque, seguindo a receita cubana, transferiu às Forças Armadas os setores mais lucrativos de uma economia em ruínas: comércio exterior e distribuição de alimentos.
Na Bolívia, prova inversa, Evo Morales nunca incluiu o Exército no jogo do capitalismo de estado, o que acabou decidindo seu destino.
O Brasil não é o Egito, Argélia, Cuba ou Venezuela. Por aqui, não se verifica uma transferência das chaves da economia às Forças Armadas. A instituição militar segue separada do governo, circunscrita às suas missões profissionais definidas pela Constituição.
Bolsonaro fica só no blefe porque militares descartam golpe |
Mas a cooptação em massa de oficiais da reserva para a administração pública, elemento do projeto de politização dos homens em armas conduzida pelo bolsonarismo, ameaça fragmentar o dique institucional.
Lá atrás, os generais estrelados cederam à ilusão de que seria possível conciliar o apoio político dos militares ao governo Bolsonaro com a preservação da neutralidade institucional das Forças Armadas.
Hoje, quando se fecha o cerco judicial à subversão bolsonarista, a tensão entre esses objetivos incompatíveis atinge temperatura insuportável.
Não vai ter golpe. Reúnem-se, porém, as condições para um putsch. (por Demétrio Magnoli)
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