dalton rosado
A TEMPESTADE COMPLETA
"O covid-19 deve causar um prejuízo à economia mundial de mais de U$$ 1 trilhão e desacelerar a economia
mundial, que deve crescer menos de 2%"
(Richard Kozul-Wright, da Unctad, uma
agência da ONU para o comércio
e desenvolvimento)
mundial, que deve crescer menos de 2%"
(Richard Kozul-Wright, da Unctad, uma
agência da ONU para o comércio
e desenvolvimento)
Preferi intitular a atual tempestade de completa, ao invés de perfeita, por considerar impróprio atribuir-se perfeição (mesmo negativa) a uma tragédia.
Vivemos uma tragédia mais econômica do que epidêmica, e o mais grave é que quem paga o ônus dessa situação são os mais pobres, ainda que a pandemia não exclua os ricos da contaminação virótica. Nisso ela não é seletiva.
À crise econômica mundial que vinha sendo anunciada para 2020 por organismos capitalistas internacionais como a Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico e o Fundo Monetário Internacional, se juntou a paralisia das transações comerciais internacionais causada pela pandemia, agravando o quadro de recessão capitalista de modo acentuado.
Mas, se há algo de positivo nessa histeria global que tomou conta dos mercados mundiais, é estar evidenciando a crueldade para com a humanidade da riqueza abstrata mensurada pela forma-valor e sua no sentido da superação do quadro de escassez de meios de subsistência, cada vez mais acentuado mundo afora.
Como não considerar doentia uma sociedade que, em pleno século da tecnologia 5G da comunicação e de tantos outros domínios na área do saber tecnológico (como a clonagem de seres vivos), tem cidades com percentagens baixíssimas de redes de esgoto sanitário?
Como não considerar doentia uma sociedade que mata os seus rios com dejetos industriais e de consumo humano (fecais, resíduos sólidos, medicamentosos, etc.), sem que se desenvolvam mecanismos eficazes de convivência harmônica com a natureza?
Como não considerar doentia uma sociedade que relega parte dos habitantes das cidades a moradias improvisadas, como é o caso das favelas, nas quais os moradores residem sem qualquer infraestrutura urbana, em vielas nas quais sequer entram veículos, submetidos a condições de habitabilidades piores do que as que existiam na Idade Média?
Como não considerar doentia uma sociedade na qual quase todos têm uma história de violência sofrida e as pessoas vivem aterrorizadas pela perspectiva de sofrerem um assalto a mão armada ou serem atingidas por uma bala perdida?
Como não considerar doentia uma sociedade que produz uma quantidade inaceitável de analfabetos completos ou funcionais?
Não, ministro Paulo Guedes, não foi o capitalismo que tirou 3 bilhões de seres humanos da miséria da ignorância. O capitalismo, pelo contrário, está a provocar miséria mundial.
Foi o próprio ser humano que, apesar de todo o sofrimento no seu itinerário histórico, conseguiu, graças ao desenvolvimento do seu intelecto (mesmo que muitas vezes impulsionado pela avidez do lucro segregacionista), superar dificuldades próprias da ignorância, lutando para obter os benefícios do saber e conseguindo evoluir e promover mecanismos de sobrevivência diante da opressão sistêmica escravista da qual tem sido vítima.
O ser humano é bem maior do que esse escravismo que lhe impõem há milênios.
A tempestade completa que ora se abate sobre a humanidade graças à conjunção de crise econômica com emergência de saúde, revela a impossibilidade de continuarmos a viver sob um modelo de mediação social que se exauriu por seus próprios fundamentos contraditórios e clama por sua superação.
Daí ser um momento oportuno para demonstrarmos que, alternativamente, somos capazes de funcionar perfeitamente abstraindo critérios econômicos.
Afinal, não existe uma molécula química sequer de dinheiro:
— numa máscara de pano que evita a transmissão do vírus covid-19, por parte dos contaminados, para as outras pessoas;
— nem nos artefatos médicos que possibilitam a respiração artificial para pacientes em estado grave;
— nem nos remédios e vacinas;
— nem nos alimentos necessários à sobrevivência humana;
— nem nas habitações e veículos que nos transportam;
— nem em qualquer outra substância transformada em mercadoria,
Infelizmente, contudo, a produção de todos esses objetos está condicionada à viabilidade econômica graças a intromissão, na produção social, do dinheiro – essa substância abstrata e oportunista que ora obstaculiza o acesso ao consumo.
Que se danem as cotações das bolsas de valores que ora derretem!
Que se danem os déficits fiscais estatais cuja solvência depende do arrocho econômico a uma população já economicamente exaurida, sob justificativas e argumentos da lógica do capital que exige inauditos sacrifícios do povo para a salvação do Estado opressor, embora, na verdade, assegurar a sobrevivência do dito cujo não vá salvar o povo iludido, muito pelo contrário (este é o imbróglio que ora está gerando atrito entre governo e Congresso, ambos anti-povo, com a derrubada do veto presidencial ao BPC)!
Que se danem os indicadores de baixo crescimento do Produto Interno Bruto, que nos impõem sofrimentos a partir de uma relação social na qual a vida é unicamente regulada por um pretendido desenvolvimento econômico impossível de ocorrer no atual estágio das relações de produção!
Que se danem as aplicações financeiras dos rentistas desesperados pela baixa remuneração dos seus capitais!
Que se danem as falências do sistema de crédito financeiro mundial, com seus ativos podres que estão a infectar o mundo com um vírus bem mais letal (os seus lucros contábeis extraídos de juros extorquidos da população)!
É chegada a hora do abandono dos critérios limitados e segregacionistas da riqueza abstrata, de forma que a riqueza material passe a ser apropriada pela humanidade que dela necessita, mediante mecanismos socialmente justos e ecologicamente saudáveis.
O covid-19 vai passar, e mesmo com as muitas mortes de pessoas às quais manifestamos o nosso sentido pesar, terá tido o mérito de dramatizar a fragilidade de um sistema que balança diante de um microscópico organismo, ao mesmo tempo em que evidenciará a urgente necessidade de um modo de produção social consentâneo com o saber adquirido pela humanidade. (por Dalton Rosado)
Um comentário:
Caro, DR
Esse texto soa como um manifesto emancipacionista que incendiaria a juventude a tomar as ruas e exigir mudanças como em 1968.
Infelizmente, neste país periférico e terraplanista, é mais provável que a juventude vá aos cultos e depois sente no sofá para assistir à tv...
Postar um comentário