Por Demétrio Magnoli |
Diante disso, a reação das pessoas esclarecidas foi agarrar-se ao mastro da razão para vencer, antes que seja tarde, a batalha contra a estupidez. No passo seguinte, ainda em curso, o apego à voz da ciência transmuta-se em fanatismo científico e fundamentalismo epidemiológico. Hoje, esse perigo supera o da já desmoralizada negligência.
Vamos mesmo —nós, esclarecidos— partir para o elogio da China? Médicos chineses alertaram para a doença em dezembro, mas foram silenciados. Esqueceremos tão cedo, em nome de uma ilusória ética de resultados, que a Covid espalhou-se precisamente naquelas semanas de camuflagem e repressão?
A vigilância cibernética dos cidadãos galgou novo patamar permanente, junto com o avanço do vírus. Festejaremos o Grande Irmão [ersatz do ditador Stalin no livro 1984, de George Orwell] como aliado e exemplo, em nome da saúde pública?
"ouve-se um clamor crescente por medidas extremas" |
Ouve-se, dos esclarecidos, um clamor crescente por medidas extremas. A Itália paga o preço da displicência com a moeda do lockdown compulsório. Macron pescou no lago do senso comum a palavra guerra para descrever uma emergência sanitária.
Guerra tem implicações: leis de exceção, justiça sumária, censura. Quem pede quarentenas coletivas forçadas está disposto a justificar suas ramificações lógicas? Sacrificaremos as liberdades civis no altar de uma guerra fabricada por artifício retórico? Concederemos, os esclarecidos, um AI-5 sanitário a Bolsonaro?
O vírus é estrangeiro, imigrante? Lá atrás, a OMS criticou os EUA pela proibição de entrada de chineses. Depois, Trump fechou as fronteiras à Europa, e sofreu a crítica da União Europeia. Hoje, a UE, maior foco global de infecções, fecha suas fronteiras externas.
A praxe normalizada pela guerra sanitária ressurgirá em outras guerras, econômicas e culturais. Quando emudecem sobre isso, os esclarecidos dissolvem os anticorpos que nos protegem do vírus da xenofobia.
Pode-se impor de forma autoritária o que ninguém saia de casa... |
Policiais italianos em roupas brancas de máxima proteção perseguem suspeitos de desobediência à quarentena. Vestiremos nesses trajes os PMs desordeiros do Ceará, os policiais-milicianos do Rio, dando-lhes o mandato de esvaziar as ruas e os becos das favelas? Em nome da vida, enviaremos a PM paulista a Paraisópolis com a missão de dispersar um baile funk?
O Brasil não é a Itália. Nós, esclarecidos, vivemos na bolha da alta classe média —mas precisamos conseguir pensar fora dela. Que ninguém saia de casa: distanciamento social!
...àqueles que têm de sair para ganhar a vida? |
Com que direito moral apontamos o modelo de lockdown absoluto como solução para cortar a transmissão do vírus em São Paulo ou no Rio? Na Rocinha, no Grajaú, em Cidade Ademar, onde as pessoas residem em habitações de 20 metros quadrados que abrigam cinco ou seis indivíduos?
O Brasil não é os EUA. Aqui, o governo não postará cheques periódicos de mil dólares para cada família durante o intervalo imensurável da guerra. Vamos parar os transportes públicos e decretar, universalmente, o trabalho à distância? Como ficam motoristas, comerciários, garçons, pedreiros, as massas de informais?
Os esclarecidos fazem bem em decorar os mandamentos da epidemiologia —mas incorrem em erro de classe ao jogar fora os manuais básicos da sociologia. Não declaremos uma guerra cujas vítimas serão os outros —os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos financeiros.
4 comentários:
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Falei muitas vezes aqui da teoria política de Platão que coloca em sequência:
Aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia, tirania e, em seguida, o caos.
O caos é a idade média da sociedade, o cada um por si, sem governo, e organização em feudos (os condomínios atuais).
Não é a toa que nas idades médias surgem pestes!
E esta do corona vírus é até fraquinha.
Bem vindo ao caos previsto pelas teses da teoria platônica.
Teoria contra a qual nunca surgiu uma evidência sequer.
E teorias tem leis que permitem prevê o que vai acontecer.
A de Platão sempre previu corretamente.
É por isso que mais uma vez pergunto: diante de Platão quem é Marx na fila do pão?
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As piores estimativas consideram que haverão mais de um milhão de mortos, mas com as medidas de restrição podem ser "apenas" milhares de falecimentos no Brasil.
Por óbvio, as consequências desta ditadura sanitarista foram, de leve, apontados por Demétrio.
Na prática, estamos presos sem ter cometido crime algum.
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Mourão esteve na China, os deputados foram para China, trocentos empresários foram para a China e, decerto, os serviços de inteligência estavam pra lá de avisados da letalidade e dos perigos do Covid-19.
A pergunta que não quer calar é: por que permitiram o carnaval?!
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Vai vendo.
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O autor deu um salto triplo carpado com seu palavreado, mas, ao fim e ao cabo, uniu-se ao discurso do "capetão": "não façam quarentena, é só uma gripezinha..."
Anonimo 529.
O nome deste argumento é argumentum ad hominen.
JB é um naif, não está a altura das circunstâncias históricas sob qualquer perpectivas.
É preciso haver um mínimo de bom senso nessas ocasiões. As autoridades não podem, para evitar a propagação da doença, impor aos pobres a morte por inanição.
É injusto equiparar a preocupação do Demétrio Magnoli com os infortúnios do povão à campanha do Bolsonaro contra as medidas sanitárias por que elas atrapalham suas manifestações fascistas.
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