"A disseminação contínua da epidemia do coronavírus acabou desencadeando, também, certas epidemias
de vírus ideológicos que estavam adormecidos
em nossas sociedades: fake news, teorias
da conspiração paranoicas e explosões
de racismo" (Slavoj Zizek)
As grandes tragédias podem trazer lições para a humanidade sobre comportamentos sociais que, em situações de normalidade, são preguiçosamente deixadas de lado.
Neste sentido, a primeira constatação é a de que temos governantes mais interessados no próprio poder do que no bem-estar da população mundo afora.
O presidente do Brasil, capitão Boçalnaro, o ignaro, após afirmar que o coronavírus era uma fantasia, viajou aos Estados Unidos para um encontro com o seu guru Donald desTrumpelhado com vários membros de sua equipe contaminados; pela primeira vez na história, a vida de um presidente estadunidense idoso foi colocada em risco por intermédio de brasileiros.
Aparece posteriormente com uma máscara, reconhecendo a pandemia, para logo em seguida tirar a máscara (de pano e de caráter) e juntar-se à sua tradicional claque de fanáticos, apertando-lhes os punhos e tirando selfies com os celulares deles, o que contrariou várias determinações da área de saúde do seu próprio governo.
O presidente destrumpelhado dos EUA também minimizou, num primeiro momento, os efeitos econômicos e sanitários do coronavírus. Qualificou o coronavírus de estrangeiro, como se os Estados Unidos fossem algo especialmente diferente e separado em termos territoriais e humanos do resto do mundo.
Contudo, como os seus interesses eleitorais, bem como as exigências sanitárias e econômicas, falaram mais alto, ele se curvou à evidência dos fatos e aderiu ao clamor mundial de prevenção virótica.
O mandatário chinês Xi Jinping e membros do seu governo quiseram inicialmente encobrir a existência de uma crise epidêmica. A polícia chinesa chegou a prender o médico Li Wenliang sob acusação de ter veiculado notícia falsa relativa a existência do coronavírus e a gravidade do que isso poderia representar. Dito médico que atuava no combate epidêmico, contaminado, veio a falecer e, hoje, mediante a admiração popular, está sendo considerado herói nacional (e verdadeiramente o é).
Somente após o coronavírus ter atingido proporções de epidemia na China é que foram tomadas as providências, para, posteriormente, o governo posar de salvador da pátria.
No Irã foi a mesma coisa. O vice-ministro da Saúde Iraj Harirchi minimizou o problema e descartou a necessidade de quarentena da população, para depois, ele mesmo aparecer contaminado e ter de isolar-se. Harirchi afirmou depois, em tom de blague, que “este é um vírus democrático, não faz diferença entre pobres e ricos, ou entre políticos e cidadãos comuns”.
Casos similares foram observados mundo afora, numa demonstração de quão irresponsáveis podem ser governantes que se consideram semideuses por estarem na cúpula de um poder verticalizado, o qual, por sua natureza opressora, fica distanciado do povo.
Somente quando se viram ameaçados de substituição por outro (mesmo que de igual comportamento na estrutura institucional) mobilizaram-se na direção de contenção mínima da crise sanitária.
A segunda constatação é a de que, diante da paralisia das relações de produção, compra e venda de mercadorias, o móvel de tais relações, qual seja o lucro (que proporciona a acumulação da riqueza abstrata de modo escravista e utilitário, pois usa a satisfação das necessidades de consumo apenas para existir e não para satisfazê-las cabalmente), é levado de roldão.
Fica então evidenciada a sua inviabilidade como modo de produção social num momento de crise, bem como a sua superficialidade segregacionista e opressora, que vem sendo imposta à humanidade e aperfeiçoada em conformidade com seu interesse por séculos a fio.
Sob circunstâncias de crise, o valor econômico derrete, de modo a comprovar a sua falta de substância, uma consequência de sua artificialidade (ele se incorpora ao objeto capaz de satisfazer necessidade de consumo apenas para lhe emprestar valor monetário, objetivando escravizar os seus produtores de base, os trabalhadores).
É o que estamos a ver agora, com a depreciação dos ativos empresariais, das mercadorias e das moedas mundo afora (a exceção é o dólar dos Estados Unidos, convencionada como moeda internacional e ainda acreditada como sendo detentora de substância, o que não corresponde à verdade).
Exemplo disso são os ativos em ações das empresas com cotação nas bolsas de valores de todo mundo.
No Brasil, quando da crise do subprime, em 2008, o índice Bovespa contava cerca de 73 mil pontos. No momento em que escrevo este artigo, está na faixa de 66,8 mil pontos. Isto significa que um rentista qualquer que tivesse aplicado na bolsa R$ 1 milhão naquela data, hoje tem menos disso, e o poder de compra do seu dinheiro está reduzido em cerca de 70%, ou seja, ele tem apenas R$ 900 mil, e compra apenas 30% do que podia comprar há quase treze anos atrás.
Fenômeno idêntico ao do derretimento dos ativos brasileiros na Bolsa está ocorrendo mundo afora. E para onde vai o capital:
— se a atividade produtiva está paralisada porque não existe para quem se venderem as mercadorias porventura produzidas?
— se a remuneração bancária das aplicações financeiras dos rentistas repassada para cobrir a dívida pública já não pode remunerar o capital suficientemente?
— se o desemprego estrutural e a queda média dos salários restringe o consumo e, consequentemente, causa depressões econômicas cíclicas cada vez menos espaçadas, mais abrangentes e volumosas?
O capital destinado à sua reprodução está desempregado. Gastar, pode; produzir não! Esta é uma contradição inconciliável.
Os especialistas de mercado ainda firmam que bolsa é investimento de longo prazo, sem saberem (ou sem quererem saber) bulhufas do que representa a riqueza abstrata na sua essência constitutiva.
Tais conceitos não são estudados nas escolas e nem mesmo nas academias superiores (salvo raras exceções de professores conscienciosos e estudiosos da teoria do valor marxiana que têm a coragem de expor a verdade e são perseguidos por isto).
Tal fenômeno, vale dizer, vem de longe. Na Rússia de Stalin, Isaak Illich Rubin, estudioso da crítica da economia política marxiana, após publicar o livro A teoria marxista do valor (editado no Brasil pela Editora Polis, em 1987), foi deportado para a Sibéria sob a acusação de conspiração, e por lá morreu de fome e de frio.
A terceira constatação se refere à necessidade de que deveremos funcionar socialmente sob outros parâmetros.
Tenho repetido que esse conflito se consubstancia no fato de que o trabalho abstrato, que é a célula mater da formação do valor (outra abstração meramente numérica, mas que comanda as nossas vidas de modo escravista), tornou-se supérfluo graças à tecnologia na produção de mercadorias, também representada pelo valor abstrato no mercado.
Assim, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro.
A forma que deu vida histórica ao valor até se transformar em relações capitalistas sucumbe diante de um conteúdo matemático-empírico insustentável, implicando a necessidade de adoção social de um novo modo de produção.
O qual, por sua vez, implica a apropriação da riqueza material de modo sustentável e que seja abundante na natureza, com o uso do saber científico adquirido pela humanidade — circunstâncias que, conjugadas, poderão tornar mais cômoda a vida para os seres humanos e promover um estágio elevado da nossa civilização, e não uma volta a barbárie como ora se prenuncia, se mantidos os parâmetros atuais.
Será a supremacia da riqueza material, a verdadeira, sobre a riqueza abstrata, artificial e escravista.
Sei que é sempre difícil olhar-se no espelho quando este pode revelar todas as nossas mazelas e todas as nossas falhas de caráter. Sei, também, que o novo traz consigo o medo do desconhecido.
Mas, por que não encararmos a verdade refletida no espelho da vida social?
Por que ainda termos medo quando aquilo que era visto com receio já está instalado e só precisa ser superado, tal qual um vírus epidêmico?
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