terça-feira, 3 de março de 2020

AO IMPRESCINDÍVEL DALTON, SINCERAS DESCULPAS E UM ABRAÇO FRATERNO

Dalton Rosado, grande amigo e companheiro, me pediu que fizesse um texto de apresentação do seu novo livro, Era uma vez o Brasil... 1928/1968.

Automaticamente concordei, como fazia na década passada, quando eram frequentes tais pedidos e eu jamais me negava a dar uma força a quem se iludia quanto aos benefícios que meu endosso lhe traria...

Só no momento de pôr mãos à obra que me caiu a ficha: eu não sou mais aquele Celso Lungaretti que ainda flexibilizava suas convicções para não cair num isolamento maior com relação a quem continuava acreditando, mesmo que inconscientemente, nos valores do sistema.

Algumas concessões foram inevitáveis, como a de trabalhar durante 33 anos como profissional de comunicação, embora sabendo que a indústria cultural existia para manipular as consciências e tangê-las para a aceitação do inaceitável. Mas, tinha de garantir minha sobrevivência, do jeito que desse. 

Estava careca de saber que a democracia burguesa é um jogo de cartas marcadas quando aceitei um convite para candidatar-me a vereador em 2012, na esperança de ressuscitar os mandatos combativos de outrora, quando esquerdistas se elegiam para fazer explodir as contradições do capitalismo e não para obter nacos inofensivos de poder, desfrutando, en passant, das benesses e mordomias do sistema. Mal eram fechadas as urnas, eu já me inspirava em Poe para fazer o balanço daquela experiência:  E o corvo disse: nunca mais!  

E na década de 1970, totalmente descrente da cultura oficial, de todas as academias de letras e de todas as críticas pernósticas que serviam apenas como referencial para consumidores do produto arte escolherem as melhores opções de investimento do seu tempo e de sua grana, eu já apostava todas as minhas fichas na arte como proposta de vida, a arte livre de todas as amarras do sistema, que cultivávamos em nossas publicações marginais, em nossas apresentações de poesia em construção, nos eventos bem comportados aos quais levávamos dissonância, etc.
Luíza Fontenelle recebendo D. Helder Câmara em Fortaleza

Estavam também impregnadas de valores da contracultura as minhas críticas de música e cinema nos anos 80, tanto que tentei até colocar em xeque o trabalho bem comportado dos críticos que se prostravam aos ditames do sistema.  Talvez haja plantado algumas sementes, mas o resultado mais visível foi a desdita do colega que adotou posicionamentos semelhantes aos meus, o Jairo Ferreira, que a Folha de S. Paulo demitiu por motivo inverossímil.

O Náufrago da utopia nasceu num momento dramático, em que eu estava quase na miséria e travava uma luta desesperada para obter a minha anistia política e obter os recursos necessários para dar a volta por cima. Então, quando o inesquecível Apollo Natali convenceu o Fernando Emediato a lançar meu livro pela Geração Editorial, foi como uma luz brilhando no fim do túnel. 

Mesmo sentindo-me um peixe fora d'água, dei todas as entrevistas que foram agendadas para mim, posei de autor respeitável numa constrangedora noite de autógrafos ("o que estou fazendo aqui?", eu pensava o tempo todo)  e, pelo menos até o fim da década passada, joguei esse jogo direitinho, até para não deixar o Apollo mal com o Emediato.

Obtive o que necessitava, tornando conhecida de públicos mais amplos a verdade sobre acontecimentos da guerrilha do Vale do Ribeira dos quais eu vinha servindo de bode expiatório havia mais de três décadas. E um bônus foi o de que essa reabilitação arrancada a fórceps me permitiu dar a contribuição que dei à causa da libertação de Cesare Battisti, um dos meus maiores motivos de orgulho na vida inteira.
Mas, as asas que o sistema inadvertidamente me cedeu naquele momento crítico, logo em seguida retomou, ao perceber quem eu realmente era. Jornais passaram a me boicotar tanto como profissional de imprensa quanto como personagem histórico. Cineastas que pretenderam levar o Náufrago às telas constataram que para esse projeto desapareciam os financiamentos. Então reaprendi a lição de que os únicos caminhos abertos para mim serão sempre os de fora do sistema.

Vem daí que o personagem escritor da década passada foi outro sonho de uma noite de verão e hoje voltei a ser o que era e a acreditar no que acreditava na década de 1970. 

Que a verdadeira cultura só pode brotar na contramão do sistema.

Que se trata de uma experiência vital, a ser fluída pelos que com ela se identificarem, sem necessidade de tutores ou cicerones.

Que crítica é possível fazer-se de um livro que diz tanto sobre seu autor e sobre tudo que o inspirou e no qual acreditou? 
Salta aos olhos que o personagem principal, o jornalista Pedruca, é apenas um ersatz do Dalton  a transitar pelos cenários que o fascinaram, sejam os imaginados a partir de leituras e músicas, sejam os da História que ele via acontecer, começando a compreender (a ação do livro transcorre entre 1928 e 1968, enquanto o Dalton nasceu em abril de 1950).

É praticamente uma história informal de 40 anos da MPB, resgatando uma quantidade incrível de informações sobre episódios, autores e canções mais ou menos conhecidos, tudo isto em interação com os principais acontecimentos políticos daqueles momentos históricos.

Nascido no RJ e tendo morado na MG paterna e no RN materno, Dalton se fixou em Fortaleza há meio século e de lá não mais saiu. Apaixonado principalmente pela música carioca e pela nordestina, autor de cerca de 240 canções que vem divulgando aos poucos, Dalton criou, contudo, um livro que vai muito além de mostrar às novas gerações a grande arte que se fazia outrora neste país. 

[E que a indústria cultural relegou ao quase esquecimento, à medida que direcionava maciçamente seus holofotes para os fabricantes de ruídos populares (a sarcástica expressão é do Paulo Francis), com ênfase em ritmos sempre esfuziantes/dançantes e letras insuportavelmente simplórias.]

Pois nele também estão refletidas todas as convicções que Dalton formou e defendeu ao longo de sua trajetória de vida e de lutas, que vem desde a segunda metade da década de 1970, incluindo:
Composição do Dalton, interpretada pelo Chico Pio
.
— a atuação como um dos fundadores do PT no Ceará; 
— a gestão como secretário de Finanças da gestão popular de Maria Luíza Fontenelle em Fortaleza; 
— a indicação como candidato à sucessão e a virada de mesa da direção nacional, que expulsou a ambos para impor outro candidato;
— a candidatura a prefeito por um partido menor, sem chance de vitória, mas servindo para marcar posição; e
—  sua práxis subsequente como escritor, advogado de causas populares e divulgador da crítica da economia política.

Quando tantos esquerdistas eminentes do passado se descredenciaram como lutadores do bom combate, a figura que transparece do Dalton, por trás de seu tour de force histórico e musical, é o de um veterano que continua fiel a seus valores (emancipacionistas), devendo servir de exemplo para as novas gerações na necessária construção de uma nova esquerda.

Meu abraço fraterno ao Dalton, ficando a lhe dever uma abordagem especificamente literária do Era uma vez o Brasil... 1928/1968. Mas será mesmo necessária?! .
(Celso Lungaretti)

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