Dalton Rosado, grande amigo e companheiro, me pediu que fizesse um texto de apresentação do seu novo livro, Era uma vez o Brasil... 1928/1968.
Automaticamente concordei, como fazia na década passada, quando eram frequentes tais pedidos e eu jamais me negava a dar uma força a quem se iludia quanto aos benefícios que meu endosso lhe traria...
Só no momento de pôr mãos à obra que me caiu a ficha: eu não sou mais aquele Celso Lungaretti que ainda flexibilizava suas convicções para não cair num isolamento maior com relação a quem continuava acreditando, mesmo que inconscientemente, nos valores do sistema.
Algumas concessões foram inevitáveis, como a de trabalhar durante 33 anos como profissional de comunicação, embora sabendo que a indústria cultural existia para manipular as consciências e tangê-las para a aceitação do inaceitável. Mas, tinha de garantir minha sobrevivência, do jeito que desse.
Estava careca de saber que a democracia burguesa é um jogo de cartas marcadas quando aceitei um convite para candidatar-me a vereador em 2012, na esperança de ressuscitar os mandatos combativos de outrora, quando esquerdistas se elegiam para fazer explodir as contradições do capitalismo e não para obter nacos inofensivos de poder, desfrutando, en passant, das benesses e mordomias do sistema. Mal eram fechadas as urnas, eu já me inspirava em Poe para fazer o balanço daquela experiência: E o corvo disse: nunca mais!
E na década de 1970, totalmente descrente da cultura oficial, de todas as academias de letras e de todas as críticas pernósticas que serviam apenas como referencial para consumidores do produto arte escolherem as melhores opções de investimento do seu tempo e de sua grana, eu já apostava todas as minhas fichas na arte como proposta de vida, a arte livre de todas as amarras do sistema, que cultivávamos em nossas publicações marginais, em nossas apresentações de poesia em construção, nos eventos bem comportados aos quais levávamos dissonância, etc.
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Luíza Fontenelle recebendo D. Helder Câmara em Fortaleza |
Estavam também impregnadas de valores da contracultura as minhas críticas de música e cinema nos anos 80, tanto que tentei até colocar em xeque o trabalho bem comportado dos críticos que se prostravam aos ditames do sistema. Talvez haja plantado algumas sementes, mas o resultado mais visível foi a desdita do colega que adotou posicionamentos semelhantes aos meus, o Jairo Ferreira, que a Folha de S. Paulo demitiu por motivo inverossímil.
O Náufrago da utopia nasceu num momento dramático, em que eu estava quase na miséria e travava uma luta desesperada para obter a minha anistia política e obter os recursos necessários para dar a volta por cima. Então, quando o inesquecível Apollo Natali convenceu o Fernando Emediato a lançar meu livro pela Geração Editorial, foi como uma luz brilhando no fim do túnel.
Obtive o que necessitava, tornando conhecida de públicos mais amplos a verdade sobre acontecimentos da guerrilha do Vale do Ribeira dos quais eu vinha servindo de bode expiatório havia mais de três décadas. E um bônus foi o de que essa reabilitação arrancada a fórceps me permitiu dar a contribuição que dei à causa da libertação de Cesare Battisti, um dos meus maiores motivos de orgulho na vida inteira.
Mas, as asas que o sistema inadvertidamente me cedeu naquele momento crítico, logo em seguida retomou, ao perceber quem eu realmente era. Jornais passaram a me boicotar tanto como profissional de imprensa quanto como personagem histórico. Cineastas que pretenderam levar o Náufrago às telas constataram que para esse projeto desapareciam os financiamentos. Então reaprendi a lição de que os únicos caminhos abertos para mim serão sempre os de fora do sistema.
Vem daí que o personagem escritor da década passada foi outro sonho de uma noite de verão e hoje voltei a ser o que era e a acreditar no que acreditava na década de 1970.
Que a verdadeira cultura só pode brotar na contramão do sistema.
Que se trata de uma experiência vital, a ser fluída pelos que com ela se identificarem, sem necessidade de tutores ou cicerones.
Que crítica é possível fazer-se de um livro que diz tanto sobre seu autor e sobre tudo que o inspirou e no qual acreditou?
Salta aos olhos que o personagem principal, o jornalista Pedruca, é apenas um ersatz do Dalton a transitar pelos cenários que o fascinaram, sejam os imaginados a partir de leituras e músicas, sejam os da História que ele via acontecer, começando a compreender (a ação do livro transcorre entre 1928 e 1968, enquanto o Dalton nasceu em abril de 1950).
É praticamente uma história informal de 40 anos da MPB, resgatando uma quantidade incrível de informações sobre episódios, autores e canções mais ou menos conhecidos, tudo isto em interação com os principais acontecimentos políticos daqueles momentos históricos.
Nascido no RJ e tendo morado na MG paterna e no RN materno, Dalton se fixou em Fortaleza há meio século e de lá não mais saiu. Apaixonado principalmente pela música carioca e pela nordestina, autor de cerca de 240 canções que vem divulgando aos poucos, Dalton criou, contudo, um livro que vai muito além de mostrar às novas gerações a grande arte que se fazia outrora neste país.
[E que a indústria cultural relegou ao quase esquecimento, à medida que direcionava maciçamente seus holofotes para os fabricantes de ruídos populares (a sarcástica expressão é do Paulo Francis), com ênfase em ritmos sempre esfuziantes/dançantes e letras insuportavelmente simplórias.]
Pois nele também estão refletidas todas as convicções que Dalton formou e defendeu ao longo de sua trajetória de vida e de lutas, que vem desde a segunda metade da década de 1970, incluindo:
Composição do Dalton, interpretada pelo Chico Pio
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— a atuação como um dos fundadores do PT no Ceará;
— a gestão como secretário de Finanças da gestão popular de Maria Luíza Fontenelle em Fortaleza;
— a indicação como candidato à sucessão e a virada de mesa da direção nacional, que expulsou a ambos para impor outro candidato;
— a candidatura a prefeito por um partido menor, sem chance de vitória, mas servindo para marcar posição; e
— sua práxis subsequente como escritor, advogado de causas populares e divulgador da crítica da economia política.
Quando tantos esquerdistas eminentes do passado se descredenciaram como lutadores do bom combate, a figura que transparece do Dalton, por trás de seu tour de force histórico e musical, é o de um veterano que continua fiel a seus valores (emancipacionistas), devendo servir de exemplo para as novas gerações na necessária construção de uma nova esquerda.
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