terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

AFINAL, O DESTINO DO BRASIL É AFUNDAR DE VEZ OU SER ARRASTADO PARA O RALO NUMA DAS PRÓXIMAS ENXURRADAS?!

dalton rosado
O CAOS NAS CIDADES
As cidades são, por natureza, um ganho civilizatório. 

O ser humano deve às suas caraterísticas de solidariedade e gregariedade não só a sobrevivência enquanto espécie, como o posterior desenvolvimento da racionalidade e a construção de vida em grandes agrupamentos humanos.

Assim, desde os primórdios, os seres humanos se agruparam em pequenos núcleos populacionais como forma de sobrevivência social para o enfrentamento:
— da fome;
— da possível agressão de outros animais (até dos da mesma espécie); e
— das intempéries geológicas. 

Entretanto (e infelizmente), a formação estrutural das cidades tem se dado, através dos tempos, a partir de um conceito escravocrata. 

Na Roma antiga, com cerca de 1 milhão de habitantes, 80% da população era escrava. Hoje, numa megalópole como São Paulo, a proporção é a mesma, ainda que o escravismo se dê de forma sub-reptícia, pelo trabalho abstrato, produtor de valor, por meio do qual se acumula a abominável riqueza abstrata, mediante a extração de mais valia.

Não adianta tergiversarmos sobre a forma inexistente ou amenizada da escravização pelo trabalho abstrato, pois ela existe e é tão cruel quanto a escravização direta. O Brasil, aliás, foi um dos últimos países do mundo a exclui-la da legislação civil, que considerava o negro como propriedade animal quase humana (e pensar que ainda existem afrodescendentes a considerando benfazeja!).
Marginais alagadas e imensos engarrafamentos: a semana passada foi infernal para os paulistanos!
Temos ainda, a escravidão salarial, com o agravante da impessoalidade, que deixa os escravocratas capitalistas aliviados perante as suas consciências e até socialmente respeitados, por criarem empregos (algo que é bizarramente louvado por todas as correntes de pensamento político).  

Foi a formação e desenvolvimento dos burgos (centros de comercialização dos excedentes da produção feudal, em cujas feiras se misturavam os produtos dos senhores feudais e as pequenas porções de mercadorias dos servos) que ensejou a transição da forma de produção social pré-capitalista para capitalista.

Daí decorre que as concentrações habitacionais humanas, com todos os ganhos proporcionados pelo desenvolvimento da ciência ao longo de séculos (ganho proporcionado pelas mentes dos seres humanos, apesar de toda a concepção escravista), esteve nos últimos milênios contaminado pela crescente ideia da formação e acumulação da riqueza abstrata excludente, que paulatinamente foi sendo formatada e aperfeiçoada em termos políticos, jurídicos e institucionais.

A ciência social do Direito conseguiu, com sua capacidade argumentativa e contribuição dos eruditos juristas a serviço do capital, transformar o direito natural em direito antinatural e legal; enquadrar a moral num conceito ético amoral; e fazer o errado passar por certo. O que é a propriedade, senão um anti-direito tido como um direito social?    
Não é esta a imagem do Rio de Janeiro que estamos acostumados a ver nos cartões postais... 
Os trabalhadores assalariados brasileiros, que em sua maioria não têm direito à propriedade de uma casa, são, p. ex., induzidos a respeitar a propriedade de quem tem mil casas e, pior, a almejarem a propriedade como se ela fosse a sua redenção social (este é o resultado de uma educação curricular que positiva a negatividade, e que agora quer voltar para um passado ainda mais remoto). 

Nas últimas enchentes, que castigaram as três maiores cidades brasileiras com fúria inaudita, vimos a destruição de vidas e do pequeno patrimônio conseguido a duras penas pelos trabalhadores obrigados a construir habitações em áreas de risco! 

Além de perderem tudo, são considerados infratores da legislação relativa aos códigos de posturas municipais – casos típicos, portanto, de vítimas inculpadas pelos próprios infortúnios sociais!

Um paralelo óbvio é com os meninos que são cooptados pelos tráfico (sem que aqui consideremos o crime como alternativa social elogiável, pois isto quem faz são os milicianos de dentro e de fora do poder...) e abatidos como moscas em chacinas policiais.  Eles também  também são oficialmente inculpados pela própria tragédia.

As inundações que andaram destruindo São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte são a explicitação inderrogável de um conjunto de fatores agrupados, resultantes de uma mesma irracionalidade: a mediação social pela forma-valor. 
Transbordamento dos córregos e recorde de vias bloqueadas em Belo Horizonte
É claro que os ambientalistas; médicos sanitaristas; engenheiros sanitaristas, de tráfego e civis; arquitetos urbanistas, e tantos outros profissionais formados nas nossas universidades (que não são tão universais  como deveriam ser, principalmente quando delas tomam conta os Weintraubs que as entravam), saberiam como agir conter as tragédias.

Mas, o que é o pensamento científico diante da volúpia destrutiva e autodestrutiva do capital que nos leva a todos para o abismo, como se fôssemos uma manada cega a seguir um condutor insano?  

Muitas soluções científicas esbarram num único entrave: elas conspiram contra o capital. 

É por isso que governantes como o destrumpelhado estadunidense e o Boçalnaro brasileiro minimizam (quando não negam peremptoriamente) os saberes científicos. 

[O segundo, vale lembrar, ousou demitir do Inpe o Ricardo Galvão, cientista brasileiro premiado pela respeitada revista científica Nature como um dos dez mais importantes do mundo! Motivo: Galvão reconheceu que os incêndios amazônicos cresceram ultimamente, e que isto se deveu à interferência humana e não a fatores naturais.]

As cidades são cindidas: 
— de um lado em menor número, núcleos habitacionais luxuosos, edificados em áreas menos vulneráveis às intempéries climáticas (mas que mesmo assim estão sendo atingidas); e 
— do outro lado, número bem maior de núcleos habitacionais que vão desde as modestas habitações, com infraestrutura precária, até as mais abrangentes e precárias construções nas vielas das favelas.

Nestas últimas, as condições se assemelham às das senzalas de outrora, com os agravantes decorrentes da multiplicação de habitações sem a menor infraestrutura urbana.

As enchentes e suas consequências apenas evidenciam uma tragédia anunciada; e daqui a alguns anos se repetirão, talvez com maior intensidade, se persistirem as suas causas sociais. 

Agora, acresce-se a essa conjuntura de tragédia urbana decorrente da cisão social existente, um novo e inesperado fator, derivado do mesmo mal capitalista: o aquecimento global cientificamente comprovado, visível e sentido por todos nós, que tem ocasionado mudanças climáticas para as quais não estamos preparados (e que tendem a aumentar à medida que avance a agressão ecológica sistêmica irracional e anti-humana ora em curso. 

O que dizer da Austrália, atingida por incêndios nunca antes experimentados, que dizimaram mais de 1 milhão de animais de sua rica fauna, única no mundo, e que agora se vê diante de um fenômeno oposto: as inundações que tudo arrasam?

O que dizer até das mansões californianas destruídas pelo fogo?

O que dizer da desertificação de vastas áreas mundo afora, que, conjugada com fatores como a baixa produtividade agrícola, compromete a produção de alimentos voltada para o mercado e está provocando o aumento da fome no mundo? 
Quando ocorrem as tragédias em várias cidades governadas por um mesmo conceito organizacional de produção e estrutura política-jurídico-constitucional, só podemos concluir que não se trata de incompetência administrativa e corrupção localizada (apenas), mas sim de inaptidão estrutural.

Diante do impasse estrutural, não podemos torcer o nariz para uma realidade que nos impõe o pensamento crítico reflexivo sem o receio de constatarmos a contradição com muitas das nossas convicções (equivocadamente) cristalizadas como verdades absolutas. 

Quando o velho obsoleto está a ameaçar as novas vidas e nossas mais caras relações sociais e familiares: 
— não devemos ter medo do novo
— não devemos ter medo da autocrítica dos nossos erros históricos;
— somente devemos ter medo de ter medo, como dizia uma velha canção dos tempos em que a esquerda dignamente amava a revolução;
— devemos considerar que deve ser proibido o preconceito com relação ao pensar, e voltarmos a gritar que é proibido proibir;
— devemos considerar a cultura, o saber e a educação, em sua multiplicidade de vertentes, como premissas da nossa libertação;
— devemos trazer os jovens, com o frescor de seu idealismo, para o combate a tudo que represente restrição às liberdades;
— devemos pensar o impensável e fazer o impossível! (por Dalton Rosado)

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