sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A AMÉRICA DO SUL EM CHAMAS

Quando a insatisfação popular eclode em vários lugares simultaneamente, a conclusão óbvia é de que não se trata de um fenômeno de gestão governamental localizado, mas de um processo de decomposição de um modelo estrutural de relação social.

A própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico acendeu a luz amarela para os prognósticos de recessão planetária, afirmando que a previsão do crescimento anual do PIB mundial caiu de 3,0% para 2,9%. 

No caso do Brasil, esse organismo voltado para o incremento do capitalismo prevê um crescimento do PIB da ordem de 0,8% no presente ano e de 1,7% em 2020.

O cálculo da renda per capita anual dos cidadãos de um país corresponde a uma simples divisão da produção dos três setores da economia (primário, secundário e terciário) pela população, sem levar em conta a cada vez mais acentuada concentração de renda; é, portanto, um índice pouco confiável para a aferição da verdadeira renda da população de um país.

Mesmo assim, segundo dados do Fundo Monetário Internacional, no ano de 2018 a renda per capita anual do Brasil, de USS 16.154, foi:
— inferior à da Argentina (USS 20.537), apesar da depressão econômica sob a qual se encontram nossos vizinhos;
 menor que a do Chile (USS 25.978), país convulsionado pela desigualdade social;
 inferior à do Uruguai (R$ 23.274);
 e se aproxima dos números da Colômbia, Equador e Peru (ainda um pouco mais atrás), o que dá bons parâmetros para avaliarmos quão explosiva é a situação do Brasil nestes tempos de liberalismo ortodoxo do ministro Paulo Guedes.
Chile: quatro décadas e meia após o pinochetazzo, o povo dá vasão a todo seu inconformismo. 
E a coisa não fica por aqui. No mundo inteiro estão sendo precarizadas as condições de vida das populações, o que serve de estopim para tantas manifestações, imigrações em massa e guerras localizadas que vêm se avolumando a cada dia. 

Para nossa infelicidade, a América do Sul, particularmente, atravesse um momento dos mais representativos dessa realidade.

Diante disso, o capitalismo e sua democracia burguesa retiram a máscara de caráter civilizatório e, ao invés de discutirem os fundamentos de base que estão a solapar a estabilidade da vida social tensionada, apela para a força dos aparatos militares, como se se pudesse tapar o sol com uma peneira.

Por aqui, a insistência do governo em aprovar a lei de excludente de ilicitude para (aniquil)ações policiais generalizadas inclui a possibilidade de liberalização descriminalizada da repressão militar aos movimentos populares de contestação ao pensamento capitalista liberal que pressupõe a perda de direitos econômicos e a supressão de ganhos civilizatórios dos costumes.
Chamas já ardem no Equador. Seguirá o exemplo chileno?

É evidente que, para uma população já exaurida economicamente, a restrição forçada de direitos, como têm sido todas as proposições governistas (reformas trabalhista, previdenciária, tributária e, agora, a administrativa) implica a perspectiva de uma explosão social.

Neste contexto, o Brasil, com sua extensão territorial continental e com metade da população da América do Sul, tem importância estratégica para a continuidade do projeto liberal mundial em rota de depressão econômica insustentável.

Nosso país não é pouca coisa do ponto de vista estratégico, tanto que, em 1964, quando o mundo ocidental capitalista estava temeroso da perda da hegemonia econômica para o bloco sino-soviético, e depois da insolência cubana às portas do Tio Sam ter levado a guerra fria ao seu momento mais dramático, os EUA deixaram de prontidão na costa brasileira o mais portentoso aparato bélico naval e aéreo já registrado no hemisfério Sul, para o caso de uma eventual (e que acabou inexistindo) resistência armada do claudicante governo Jango Goulart aos golpistas.

A tensão está voltando, e por motivo diverso.

Já não é mais a guerra fria e ideológica que está a provocar a tensão sul-americana, mas um fator muito mais difícil de ser combatido pelo capital: a insustentabilidade das relações de produção capitalista!
Bolívia: continuísmo de Morales ensejou golpe da elite racista
O inimigo do capital de agora é o próprio capital. Por mais que se queiram inventar inimigos ideológicos, como é o caso da tentativa de polarização entre ultradireita (Boçalnaro e seus asseclas) e a social-democracia (PT e partidos que gravitam na sua órbita), cada vez mais se percebe que algo diferente de que ser feito, e fora da institucionalidade burguesa neoliberal ou keynesiana. 

O que está na base do inconformismo social é a impraticabilidade e insustentabilidade dos fundamentos da dinâmica de reprodução do capital, que encontraram o seu limite interno ditado pelas contradições previstas pelo Marx esotérico, o qual é desconhecido (voluntaria ou involuntariamente) até mesmo pelos próprios marxistas tradicionais.

O aparato militar tradicional, das guerras convencionais e ocupação militar, agora se transforma em aparato policial-militar, e os tanques de água e tinta ora utilizados, logo, logo, transformar-se-ão em metralhadoras a atirar contra uma população insurgente.

Quantos já morreram, ou ficaram cegos ou machucados no Chile, país que até outro dia os economistas neoliberais a serviço do capital incensavam como experiência vitoriosa de aplicação desse modelo político-econômico (estado mínimo militarizado e máxima exploração e concentração das riquezas)?
Êxodo venezuelano, uma terrível tragédia humanitária

Quantos já morreram na, ou deixaram a, Venezuela, exemplo do keynesianismo capitalista de estado fracassado?

Quantos já morreram na Bolívia, um país dividido entre o populismo de esquerda e uma elite racista de direita?

Por que o governo da Colômbia, diante de uma greve geral paralisante, fechou todas as suas fronteiras (que antes recebiam refugiados venezuelanos, como se ali fosse um território livre onde as franquias democráticas burguesas vigoravam plenamente)?

O que significam as escaramuças político-institucionais no Equador e no Peru, onde as insatisfações populares são o caldo de cultura de abalos jurídico-constitucionais, originárias de ordens político-econômica instáveis?

Por que o capitalismo liberal anunciado por Maurício Macri na Argentina fracassou e lhe impôs uma derrota eleitoral diante daqueles mesmos que haviam sido rejeitados pelo povo portenho há tão pouco tempo?

Os motivos das turbulências acima elencadas são os mesmos pelos quais as pesquisas de opinião pública já demonstram o desgaste do contraditório governo boçalnariano cuja natureza ideológica nacionalista-liberal-fundamentalista religiosa-astroilógica, de sinais trocados, pretende se manter pela força caso as ruas clamem por transformações sociais substanciais (todos os atos de governo apontam em tal direção).
Fantasma da convulsão social assombra os gabinetes do poder
Trata-se de decomposições orgânicas estruturais para as quais a persistência no modelo de capitalismo até agora utilizado já não corresponde minimamente à sustentação sistêmica econômico-institucional e está a provocar as turbulências da vida social e a agressão ecológica.

Esse é o leitmotiv da insatisfação generalizada e não vai ser por meio da repressão pura e simples que se manterá inabalável a (des)ordem político–econômica-institucional do tacão segregacionista do capital em fim de feira.

Saiamos do letargo; é urgente. (por Dalton Rosado)

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