sábado, 5 de outubro de 2019

DOS DELÍRIOS DO JANOT DO CAIXÃO À CRIAÇÃO DO MP DE FRANKENSTEIN, A POLÍTICA BRASILEIRA É UM HORROR!

demétrio magnoli
O MINISTÉRIO POLÍTICO
Quanto vale a palavra de Rodrigo Janot? O então procurador-geral entrou armado no STF com a finalidade de matar Gilmar Mendes e, na sequência, tirar sua própria vida. Verdade? Mentira? Delírio de um mitômano? No fundo, pouco importa. 

O conto deve ser lido alegoricamente, como parábola de uma colisão engendrada há três décadas, na hora em que os constituintes esculpiram o atual Ministério Público.

Nos artigos 127, 128 e 129, a Constituição criou um poder sem controle externo e sem limites jurisdicionais. O MP paira sobre o Estado, não respondendo a nenhum dos três Poderes. 

Nas suas próprias palavras, opera como “uma espécie de Ouvidoria da sociedade brasileira”, exercendo a “tutela dos interesses públicos, coletivos, sociais e difusos”. 

Dito de outro modo, o MP não seria uma Ouvidoria da aplicação das leis, mas um tradutor do “interesse geral”.

Ninguém percebeu à época, mas dava-se à luz um Partido, com “P” maiúsculo —isto é, uma entidade política singular, que supostamente representa toda a sociedade e não precisa passar pelo filtro das urnas. O MP tornou-se um recipiente perfeito para gerações de jovens promotores e procuradores engajados na reforma social por meio do sistema de justiça.

Política é a arte de explicitar e solucionar as divergências por vias pacíficas. As divergências que atravessam as sociedades coagulam-se em partidos. Nos sistemas totalitários, elas não desaparecem, emergindo sob a forma pervertida de facções clandestinas no interior do partido único.

O MP, concebido como Partido, fragmenta-se necessariamente em diferentes partidos, que refletem traduções conflitantes do interesse geral

O Ministério Político não é um, mas vários. Pela esquerda, em 1991, surgiu o chamado Ministério Público Democrático, hoje com mais de 300 associados. 

Pela direita, em 2018, nasceu o chamado Ministério Público Pró-Sociedade, que organiza seu 2º Congresso Nacional. 

“Nós dois lemos a Bíblia noite e dia, mas tu lês preto onde eu leio branco” (William Blake). Os dois leem as mesmas leis, mas cada um as interpreta segundo seu programa político particular. 

O Janot do conto, pistoleiro suicida, encontra seu lugar no Janot da História. O momento de seu propalado gesto de loucura inscreve-se numa sequência de atos políticos:
— no 8 de maio de 2017, o procurador-geral pediu a suspeição de Gilmar no caso Eike Batista;
— no dia 17, vazou o áudio do diálogo explosivo entre Joesley Batista e Michel Temer; e
— no 23, publicou um artigo de denúncia do “estado de putrefação de nosso sistema de representação política”.

Numa “estranha aliança do sublime com o obsceno” (Octavio Paz), o cavaleiro andante da limpeza pública faria a justiça verdadeira com o projétil de uma pistola, eliminando a justiça monstruosa, corrompida, inventada pela Constituição.

A vocação dos partidos é perseguir a conquista do poder. Naquele maio, Janot construía o trampolim de sua candidatura presidencial, fincando-o sobre um pacto profano com Joesley Batista.

A politização do MP atingia um clímax, empurrando seu chefe à guerra aberta com o Executivo e à uma tentativa, no fim frustrada, de submeter a seus desígnios o Congresso e o STF.

Quatro meses depois do pedido de suspeição de Gilmar, um desmoralizado Janot ergueu a bandeira branca e, em gesto de rendição, solicitou a revogação da imunidade de Joesley.

A colisão do Ministério Político com as instituições não desaparece junto com a desgraça do ex-procurador-geral. Hoje, a candidatura presidencial de Sergio Moro concentra o projeto de poder do Partido dos Procuradores

A nossa Operação Mãos Limpas, tão necessária, dissolve-se numa lagoa viscosa de ilegalidades, um pesque-pague para as defesas de corruptos e corruptores.

O conto de Janot, mais que roteiro potencial de um filme, é uma lição política. Vamos estudá-la? 

                  (por Demétrio Magnoli)

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